A apropriação da cultura latina-helenístico como veículo de construção de educação cristã em Agostinho de Hipona

O pensamento cristão de Agostinho teve influência decisiva da cultura greco-clássica
1. O CRISTIANISMO COMO CONSTRUTOR CIVILIZATÓRIO
Durante muitos séculos, o Cristianismo seguiu seu curso reivindicando espaços e instituindo regras, valores e visões de mundo. O principal canal para aquela religião se tornar historicamente efetiva enquanto discurso e prática foi a Igreja, em especial, a Católica.
Sabe-se que o Cristianismo, por meio de seus valores, construiu o que se denomina por mundo ocidental. Não raro, muitos advogam a ideia de que aquela religião construiu o “mundo civilizado”.
A transmissão de valores cristãos – lenta, conflituosa e consistente – decorreu de amplos processos de incursões “civilizatórias”. Neste sentido, fez-se uso dos mais variados expedientes, desde a aculturação até mesmo o emprego da belicosidade. As diversas tradições construídas ao longo dos séculos se sobrepujaram sobre povos e culturas, entre as quais, a transmissão dos valores gregos. Sobre a questão, Ferguson (1973, p. 179) destaca: “[…] transmitir é transmutar, modificar, não abandonar. A curiosidade intelectual, a exploração da expressão literária e artística, mantêm-se e anima nova tarefas científicas e artísticas em todos os lugares em que os homens renovam os seus contatos com os gregos”. Assim, nos primeiros séculos da “tradição cristã” valeu-se de diversos meios para apropriar pensamentos da tradição helênica, bem como da tradição latina, para ressignificá-los e difundí-los nos meios sociais.
Diante do exposto, o presente estudo tem por objetivo observar as relações de apropriações discursivas da antiguidade grega e reiteradamente ressignificada na lógica cristã. Como exemplo destas, analisou-se o raciocínio do pensador Agostinho de Hipona (354-430), responsável por reinterpretar a obra platônica a qual foi, por ele, adaptada ao Cristianismo – adaptação muito marcada por traços de historicidade que lhe são próprios, uma vez que aquele pensador vivenciou experiências distintas antes de se converter ao Cristianismo. A obra platônica vivenciou uma nova interpretação com as reflexões de Plotino, consagrado como o principal pensador do “neoplatonismo”.
Agostinho de Hipona é autor de vasta obra, sendo um dos referenciais para o Cristianismo de seu tempo. Disputas, querelas e debates foram travados em várias arenas no campo das ideias, para construir o que viria a ser a doutrina ortodoxa daquela religião, guiada pelo magistério da Ecclesia. Ao mesmo tempo, o pensador em questão também foi responsável, enquanto prelado, por difundir as ideias cristãs por meio de cartas, sermões e pregações. Ele não somente tinha o talento literário para expressar as ideias cristãs aos seus interlocutores e seguidores, mas também o discurso autorizado, legitimado pelos seus pares, para assim o fazer. Mesmo quando confrontado, o núcleo dominante da ortodoxia promovia o apoio às suas teses. Assim, entre as diversas obras escritas, foi de interesse aqui analisar a obra De Doctrina Christiana, articulando-a ao contexto de profusão de valores cristãos ao universo do “paganismo”. A obra supramencionada atenta para uma “Paidéia Cristã” no momento em que a Igreja Católica precisava formar quadros para compor o corpo eclesiástico e uniformizar o discurso, ou hegemonizar a ortodoxia, face aos grupos minoritários ou caracterizados como “heréticos”. O magistério cristão, ao que tudo indica, se manifestava ali com o intuito de garantir o prosseguimento das ideias as quais circulavam, pelo menos, no circuito onde Agostinho se fizesse presente. Ademais, a Paidéia não se tratava apenas de um código de conduta moral, mas, sobretudo, uma cosmovisão de mundo, isto é, a apresentação de um novo paradigma civilizatório face ao qual já tivesse sido construído da tradição greco-romana.
Thornhill (2008) explica que o processo de construção da tradição cristã no interior do Império Romano tem implicações seculares. Durante o processo de crise da cultura helenística, houve o sincretismo de elementos de culturas camponesas e de guerreiros. Entre as culturas “bárbaras”, a religião grega havia perdido muito do seu frescor, tornando-se apenas instituição social. Neste ínterim, aquele autor reforça que a estrutura religiosa grega já desgastada foi preenchida por novos elementos culturais totalmente alheios a sua configuração, mas que, de certo modo, foi fundamental como suporte para que novas culturas religiosas de tradição camponesa pudessem ocupar tal vazio.
Para Dawson (1961), tal amalgamento de culturas não expressa uma crise social e política da tradição helenística, mas uma espécie de hibridismo, onde era possível alavancar as bases para que uma nova tradição pudesse fazer suas permanências. Assim, para aquele autor, nenhuma cultura entra em crise, mas passa por um sincretismo, reunindo elementos culturais outrora dominantes e elementos excluídos que passam a fazer parte do centro. Sua ideia de sincretismo é polêmica quando se leva em consideração o que se compreende como sincretismo nos moldes da colonização moderna, sobretudo, na América colonial.
Contudo, é compreensível a concepção de que as tradições cristãs e ditas pagãs passaram por um processo de sincretismo. É possível discutir os processos pelos quais tais misturas se desenvolveram, mas, de fato, o Cristianismo do século V já não era aquele das primeiras comunidades apostólicas ou pós-apostólicas da região da Jônia. As comunidades africanas romanizadas, por exemplo, tiveram um desenvolvimento próprio face à importância econômica de algumas cidades do norte da África, como, por exemplo, Hipona: uma importante cidade portuária – residência de Agostinho. Sob tal viés é que os valores cristãos ganham maior penetração, no momento que embora para muitos historiadores seja o de crise para o Império Romano, Brown (1972) afirma que, em verdade, o que se enseja é o renascimento de um novo mundo que se abre, marcado pelo sincretismo dos valores cristãos e as tradições culturais greco-romanas, ou seja, a Antiguidade Tardia. Neste ínterim é que se elabora e reproduz a “Educação Cristã”.
A compreensão de mundo civilizado em Agostinho toma um contorno mais definido. Sua obra De Civitate Dei, por exemplo, trata sobre tal reflexão com maior fôlego. Ali se tem uma lógica bem platônica ao admitir a existência do mundo terreno e do mundo da glória.
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor-próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus, testemunha de sua consciência. Aquela ensoberbece-se em sua glória e esta diz a seu Deus: Sois minha glória e quem me exalta a cabeça. Naquela, seus príncipes e as nações avassaladas veem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo (SANTO AGOSTINHO, 2010, p. 165).
Para Thornhill (2008), o paralelo em questão possui estreita relação desde as tradições judaicas, na ideia parasidíaca em que Deus-Yaweh possibilitará aos seus eleitos. Agostinho faz uso de vários trejeitos em prol daquele paralelo, de dois mundos que são totalmente distintos e que um sobrepõe ao outro, desde a narrativa diluviana, onde Deus-Yaweh destruiu o mundo terreno para salvar a humanidade da corrupção, selecionando os eleitos que construiriam o novo mundo, até a nova civilização renovada de toda era daninha de maldades. Tal perspectiva discursiva encontra terreno nas narrativas cristãs, face ao império que passava por um processo de crise, sobretudo, com as iminentes ocupações germânicas que se avizinhavam.
A transmissão de novos valores para o novo mundo em emergência se fazia necessária para construir a nova sociedade que viria a florescer: a sociedade medieval. A transmissão de valores passa a ser uma tônica mais intensa nas comunidades cristãs, sobretudo, com os tensos debates em ocorrência ao longo do Mediterrâneo no que diz respeito à consolidação dos valores doutrinários da ortodoxia. O Cristianismo toma uma vitalidade acelerada naquele espaço temporal, possibilitando maior energia para a nascente Igreja Católica assimilar as estruturas romanas como que uma carga parasitária. A educação cristã passa a ser a tônica do cotidiano de centenas de convertidos. A religião em questão criava os germes da civilização ocidental[1].
2. A EDUCAÇÃO CRISTÃ NA ANTIGUIDADE
A educação cristã na Antiguidade cumpriu papel histórico essencial na transmissão dos valores de sua crença e doutrina. O Cristianismo era propalado pelas comunidades cristãs da “Igreja primitiva”, ou conforme Rops (1991), a Igreja dos primeiros tempos. Ali se tinham pequenos grupos que se reuniam para meditar as orientações cristãs mediante a orientação de uma liderança. A liderança era constituída de instruções orientadas para serem transmitidas às comunidades reunidas nas “igrejas”, isto é, nos pequenos grupos comunitários. O cotidiano era marcado por uma expressão ética profunda na prática dos costumes religiosos – dos aspectos mais íntimos até os aspectos públicos. A coesão social do grupo era marcadamente forte, pois, as lideranças promoviam forte apelo motivacional via discursos exprimidos, para que os indivíduos se congregassem.
Ao longo da bacia mediterrânica havia diversas comunidades cristãs espalhadas e organizadas. Eram tempos onde os cristãos podiam se reunir sem alguma perseguição. O vigor do Édito de Milão ressoava com força e, neste sentido, o Cristianismo gozava de status privilegiado se for comparado aos tempos sombrios da perseguição sistemática do Império Romano[2]. É possível afirmar que havia uma espécie de rede de comunidades cristãs em muitas localidades, com profundos laços de sintonia e recíprocas trocas de experiências. As ditas igrejas eram espaços notavelmente importantes para disseminação da doutrina cristã. O envolvimento familiar ali era de convivência cotidiana, possibilitando a interatividade dos indivíduos com as crianças, garantindo as futuras gerações cristãs. Sobre a questão, Marrou (1975, p. 480) destaca:
A família cristã é o meio natural em que se deve formar a alma da criança. Consistindo o fundamento principal de toda educação na imitação do adulto, trata-se antes de tudo, de uma educação através do exemplo mas esta não exclui um esforço consciente de pedagogia religiosa. […] Aos pais, ao pai sobretudo (à mãe para as moças), cabe o cuidado de sua formação cristã: devem ensinar-lhes a História Sagrada, as belas histórias de Abel e Caim, de Esaú e Jacó, sob uma forma familiar, esforçando-se para aguçar-lhes a curiosidade (MARROU, 1975, p. 480).
A família era importância no referido processo de transmissão de valores cristãos para os descendentes. Contudo, Marrou (1975) observa que a família tinha um papel subsidiário. Na verdade, a densidade da transmissão ficava a cargo dos sacerdotes e lideranças religiosas. Aquele autor argumenta que a religião cristã é uma religião de doutos, em razão de que as lideranças cristãs tinham uma formação educacional sólida em estudos eruditos na Bíblia. A catequese exerceu ação preponderante no cotidiano das comunidades cristãs. Em vários séculos, tal prática social foi repassada como possibilidade, contando sempre com o contato das novas gerações com as ideias cristãs, embora houvesse uma grande diferença entre o que os pais ensinavam em casa para os filhos e o que os sacerdotes ensinavam nas ditas igrejas. O ensino não se dava de modo aleatório. Os iniciados deveriam passar por testes e tempos de formação para o ingresso na religião – ação denominada batismo. Havia líderes designados para tal finalidade.
A Igreja como tal, por intermédio de um delegado especialmente nomeado para isto, é que instruía o catecúmeno: desde as primeiras gerações cristãs, vemos em função os “mestres”, […] encarregados deste ensino e investidos para seu desempenho de um carisma próprio. A instituição do catecumenado desenvolve-se progressivamente, à medida que se multiplicam os novos convertidos: tomou sua forma definitiva em Roma por volta de 180; exige então uma longa prova, cuja duração está fixada em três anos, durante os quais é ministrado cuidadosamente programado (MARROU, 1975, p. 481).
Tem-se um processo de organização das comunidades cristãs para a preparação não somente de indivíduos para iniciarem na doutrina cristã, mas também daqueles para ministrarem as tarefas com afinco de proliferar os ideais religiosos do Cristianismo no Império. Sobre a questão, Rapps (2005) trata da discussão sobre a construção do corpo episcopal dos primeiros séculos. Aquele autor salienta que haviam redes episcopais organizadas ao longo da bacia mediterrânea, com atuação pública dos bispos, demandando ao Estado romano. Surgem, então, grandes intelectuais que se tornaram referências teológicas para a transmissão da doutrina cristã, com destaque para: Ambrósio de Milão, Atanásio, Basílio e Agostinho (o bispo de Hipona) (MORESCHINI; NORELLI, 2000). Também Marrou (1975) reafirma o caráter intelectual do Cristianismo, denominando-o religião do livro. Aquela religião não somente era a religião das massas – pela fácil compreensão de sua mensagem –, mas também havia a linguagem douta – absorvida da tradição clássica grega e latina, constituindo uma espécie de uma “camada privilegiada” nos conhecimentos e que se dava com autoridade perante as comunidades organizadas.
Nascido na Palestina helenística, o cristianismo desenvolveu-se, tomou sua forma no seio da civilização greco-romana e recebeu dela uma indelével marca: mesmo pregado a chineses ou bantos, o Evangelho não pode esquecer que foi em primeiro lugar redigido em grego; este fato é para o cristianismo tão essencial quanto para o budismo haver aparecido na Índia ou para o islamismo ter sido o Alcorão formulado em árabe (MARROU, 1975, p. 485).
Agostinho tinha consciência de seu papel de formulador de conhecimentos teológicos para a elaboração de consolidação da ortodoxia, mobilizando indivíduos para o serviço presbiteral. Como bispo, ele tinha em mente a liderança que exercia para construir a unidade entre os cristãos e, sobretudo, defenestrar os “indesejáveis” que elaboravam doutrinas contrárias, consideradas para o grupo dominante – o partido católico – como doutrinas erradas e constituídas de heresias, embaraçando a formulação dominante e até mesmo inviabilizando a concretização da “nova sociedade” que estaria por construir em face da crise do Império naquela altura.
3. AGOSTINHO E A LINGUAGEM ESCRITA COMO MEIO DE EDUCAR
A obra De Doctrina Christiana começou a ser escrita por Agostinho em 397 d.C., no início do seu episcopado. Foram redigidos, então, os três primeiros livros, mas a obra somente foi concluída entre os anos 426-427 d.C., uma vez que IV, 24, 50, o autor faz alusão a um sermão que pregara havia mais de oito anos, em Cesaréia de Mauritânia – acontecimento que se deu em 428 d.C. Tem-se, assim, uma obra que levou 30 anos para ser encerrada. Ao retornar à obra após tão longa interpretação, não parece provável que tenha remanejado. Limitou-se a completá-la, como ele mesmo o indica, o que não impediu a divulgação do livro incompleto. Em Contra Fausto, escrito em 400 d.C., é possível encontrar alusão à passagem de De Doctrina Christina (II, 40, 60), que trata dos egípcios despojados pelos hebreus por ordem de Deus. Portanto a, obra já era de domínio público.
Portalité (1931) afirma que De Doctrina Christiana é um verdadeiro tratado de exegese, um valioso monumento histórico em prol do conhecimento do caráter da exegese daquela época. Para outros estudiosos, trata-se de uma obra não somente de exegese ou hermenêutica, mas um escrito essencialmente didático e pastoral, dirigido a todos os cristãos cultos, proporcionando conteúdo e métodos de formação com base bíblica.
Para o agostinólogo Bardy (1946), o argumento central da referida obra trata da apresentação de um conjunto de regras que ajudam a entender as “Sagradas Escrituras”. Constitui, para Agostinho, a verdadeira introdução aos livros bíblicos, seguida de método de pregação cristã. Revela as preocupações pastorais de Agostinho como bispo. Aqui vale destacar que não foram suficientes os trabalhos exegéticos de ordem teórica.
Na obra em questão tem-se uma série de reflexões sobre os textos bíblicos de cunho moral, teológico e espiritual. Porém, é preciso atentar-se ao livro IV, que trata das orientações catequéticas: métodos de retórica, com finalidade persuasiva para pregações; é um manual de catequese feito para religiosos para transmitir, segundo Agostinho, a “verdadeira doutrina cristã”.
O pregador é o que interpreta e ensina as divinas Escrituras […]. Como defensor da fé verdadeira e adversário do erro, deve mediante o discurso ensinar o bem e refutar o mal. Nesta tarefa, o mestre deve tratar de conquistar o hostil, motivar o indiferente e informar o ignorante sobre o que dever ser feito ou esperado. Mas ao encontrar ouvintes benévolos, atentos, dispostos a aprender seu discurso como pedem as circunstâncias (SANTO AGOSTINHO, 1991, p. 217).
Mais do que uma obra de exegese bíblica para o seu tempo, De Doctrina Christiana é programa de formação cultural com base bíblica. Agostinho, o “pedagogo” de outrora, uma vez feito Mestre da Igreja, quer que a ciência seja conhecida e que se faça bom uso dela, pois somente o saber não basta para alguém ser sábio.
A Igreja não possuía, até aquele momento, nenhum escrito semelhante. Mais do que qualquer um de seus antecessores, o bispo de Hipona sentia-se qualificado para tanto, graças à sua formação de cultural clássica. Não ocorreu que ele tenha recalcado suas origens, uma vez que soube ultrapassá-las no fórum íntimo. Agostinho se arrisca a traçar o projeto de uma nova formação, cujo objetivo determinará a unidade do plano. Ele retém do antigo saber somente o que lhe parece servir, e deixa tranquilamente de lado o que julga não mais ser necessário. “Fico tomado de admiração e espanto diante da arte com que nossos escritores, com eloquência que lhes é própria, usaram da eloquência profana, de modo a lhe dar um lugar sem deixar, contudo, que ela dominasse” (SANTO AGOSTINHO, 1991, p. 221).
Assim como deveria existir doravante uma só filosofia – a de Cristo –, também não deveria existir a não ser um só e verdadeiro saber e uma única “ciência” cristã. A ciência única é a Bíblia, com a arte de compreender bem, e de anunciar corretamente a verdade ali contida.
Na mesma linha de raciocínio, Daniélou e Marrou (1963) atentam que De Docrtina Christiana é a obra onde se têm as grandes afirmações e a originalidade da cultura cristã da época dos Padres da Igreja. Agostinho redige com precisão o referido manual, onde se tem uma exposição da cultura religiosa, toda organizada em torno da fé e da vida espiritual. A educação, no tempo do bispo de Hipona e dos Padres da Igreja, era essencialmente literária, tendo por coroamento o estudo paciente e obstinado da técnica oratória. Todos os Padres da Igreja foram escritores e oradores, o que vinha a ser uma só coisa em uma época onde a palavra humana conservava sua predominância tradicional sobre a escrita.
Portanto, a maior parte das obras de Agostinho é escrita com uma perspectiva teológica, sem deixar de fazer profundas especulações filosóficas que se desdobram nos diversos aspectos do real. Não deixa de dialogar com as estruturas de poder, mas também sem perder os contatos com as comunidades mais simples.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tradição cristã tem peso significativo na construção da moldura de pensamento dos valores da tradição ocidental. A transmissão da referida tradição sempre foi uma propagação da Igreja cristã na Antiguidade e que se tornou “depósito da fé”, sendo transmitida ao longo de toda a história ocidental. Agostinho de Hipona desenvolveu técnicas de transmissão de tais valores – ele não o único, mas tem relevo no corpo de teólogos da Antiguidade, tornando-se referência –, a fim de que pudesse propagar nas comunidades cristãs de sua época.
Neste sentido, De Doctrina Christiana mobiliza uma reflexão interessante para pensar as relações de linguagem e pensamento, mostrando que os signos não são isolados de per si, mas são portadores de conceitos, ideias. Embora aquela obra não faça a menção de construção de um “projeto civilizatório”, torna-se uma obra para discussão sobre o papel da transmissão dos valores, e neste sentido, uma discussão de cunho teológico, sobre os métodos de educar com vistas à formação de um ethos cristão de seu tempo.
REFERÊNCIAS
BARDY, G. Saint Augustin: l’homme et l’oeuvre. 6. ed. Paris: Desclée Brouwer, 1946.
BROWN, P. O fim do mundo clássico: de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Verbo, 1972.
DANIELOU, J.; MARROU, H.-I. Nouvelle Histoire de l’Église: des origines à Saint Grégoire le Grand. Paris: Seuil, 1963.
DAWSON, C. Dinamica de la historia universal. Madrid: Ediciones Rialp S. A., 1961.
FERGUSON, J. A Herança do Helenismo. Lisboa: Verbo, 1973.
MARROU, H.-I. História da Educação na Antiguidade. Trad. de Mario Leônidas Casanova. São Paulo: EPU, 1975.
MORESCHINI, C.; NORELLI, E. História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina: do Concílio de Niceia ao início da Idade Média. São Paulo: Loyola, 2000. v. II.
PORTALIÉ, E. Saint Augustin. In: Dictionnaire de théologie catholique. Paris, 1931. (Tomo I, 2)
RAPPS, C. Holy Bishops in Late Antiquity: the Nature of Christian Leadership in an Age of Transition. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2005.
ROPS, D. A Igreja dos Apóstolos e Mártires. Trad. de Emérico da Gama. São Paulo: Quadrante, 1991. v. I.
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus (Contra os Pagãos). Trad. de Oscar Paes Leme. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. Parte II.
_____. A doutrina cristã. Trad. de Nair de Assis. São Paulo: Paulinas, 1991.
SANTOS, R. J. M. O Édito de Milão: contexto, texto e pós-texto. Maceió: EDUFAL, 2006.
THORNHILL, J. An introduction to Christopher Dawson’s concept of History. Australian Journal of Theology, n. 1, 2008.
WARD-PERKINS, B. The fall of Rome: and the end of civilization. New York: Oxford University Press, 2005.
[1] A dita civilização ocidental é marcadamente embevecida dos valores do eurocentrismo. Cabe esclarecer aqui que não foi a tradição cristã, nem Agostinho, os elaboradores da cultura ocidental. Contudo, os germes aqui referidos são apropriações próprias de legitimação daquela civilização. Trata-se de um debate – que não será aqui desenvolvido – sobre a Modernidade e a apropriação dos valores da Antiguidade. Cf. Ward-Perkins (2005).
[2] A publicação do Édito de Milão, em 13 de junho de 313, por Constantino, foi um ato político de sinalização do Império na perspectiva de cooptar o Cristianismo. Porém, nas franjas do Império, os cristãos continuavam a sofrer com perseguições e martírios, levando muito tempo para incorporar a tradição cristã como prática cultural ali reconhecida (SANTOS, 2006).