Os interditos da Cristandade: Igreja, pecado e poder em Agostinho de Hipona

A Cristandade moldou o Ocidente a partir do construto moral do interdito
INTRODUÇÃO
Santo Agostinho (354-430) declarou que o pecado é um dos terríveis males que assola os seres humanos e que a marca desse mal ficaria impresso para todo o sempre. A única forma de salvação é a busca pela Igreja, e assim, de Deus, o único detentor da salvação das almas dos pecadores.
E para alcançar essa salvação é necessário que os fiéis recorram, portanto, a Igreja, portadora da verdade, para que seus pecados sejam absolvidos. Mas, para atingir esse alcance, embora seja gratuito, o crente deve se submeter às diversas prescrições cristãs estabelecidas pela Igreja, a fim de que não recorra à prática pecaminosa. O crente, dessa forma, deve seguir as orientações da Igreja, pois assim estará protegido contra as influências malignas, até que venha o Salvador e alcance, seguramente, a vida eterna a qual Cristo preparou para os que assim lhes forem fiéis2.
A exposição acima é bem ilustrativa e expressa a nossa inquietação na investigação deste tema, que embora muito estudado, instiga-nos a pensar novas perspectivas acerca desse discurso sutil e sistematicamente propalado pela Igreja3 no Ocidente. O pecado enquanto tema historiográfico constitui-se de extensivo conjunto de estudos que adiante, de forma muito sumária, trataremos deles.
A questão que queremos investigar, entretanto, é a associação do pecado, enquanto discurso construído historicamente pela Igreja à luz de Agostinho de Hipona, associado ao discurso de poder4 para manutenção do éthos cristão que no mundo
UMA LITERATURA DO PECADO
A literatura produzida sobre o tema do pecado pode ser vista de diversos ângulos, sendo que o de maior vagar é o teológico. Nas ciências humanas, Jacques Le Goff afirma que os primeiros estudos, enquanto arcabouço metodológico e científico, remontam o século XIX, observando os interditos e as transgressões do sagrado nas experiências das comunidades primitivas.
Entre os povos “primitivos” o pecado aparecia como a violação de um tabu ou a falta de uma regra de culto. É o pecado não-ético ou mágico, simples violação do tabu, definido pelas irreverências da intencionalidade, automaticidade, objectividade, materialidade, concretização do facto qualificado de pecaminoso e assentado, para concluir, na distinção entre puro e impuro.5
A definição de pecado neste período, certamente, estava relacionada a uma perspectiva objetiva, sem estabelecer a questão da culpa e da transgressão ético-moral. O pecado era uma transgressão do tabu. Não tinha a componente moral6. E era uma transgressão que deveria ser punida, uma vez que romper com o tabu, os males assolavam o coletivo. Os sacrifícios de punição tinham a função ritualística de libertação, uma vez que o mal ficava impregnado no indivíduo que rompeu com o tabu e com a comunidade a qual esse indivíduo pertencia.
Na Antiguidade, especialmente na tradição grega, o pecado era visto nas composições das mitologias, das tragédias e das comédias (leia-se Homero, Sófocles, Ésquilo, Aristófanes, entre outros) como a prática de um erro. A palavra
da integração social, tornam possível obter o consenso acerca do sentido do mundo social o qual contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social dominante. O poder simbólico consiste, então, “neste poder invisível que só pode ser exercido com complicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo os que exercem”. Ver BOURDIEU, P. O poder simbólico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.Pp.7-8.
Por isso, a discussão do conceito de pecado tem uma morfologia de significados, pois ao tentar estabelecer uma definição, percebe-se que ele muda de sentido em diferentes culturas e espaços sociais. Pode-se analisar o conceito de diversas formas como, citando alguns exemplos, de Mary Douglas8, que analisa a partir de um ângulo antropológico observando o pecado na era primitiva; Rudolf Otto9 que associa a dimensão do pecado como contraponto de uma perspectiva de racionalização do sagrado; Gerardus Van der Leeuw10, que descreve o pecado a partir de um prisma fenomenológico, isto é, ele [o pecado] é uma forma de hostilidade e inimizade por parte do homem a Deus. Portanto, o conceito é amplo e não pode ser visto apenas sob à guisa da religião/teologia judaico-cristã.
No caso da referência judaico-cristã, Jacques Le Goff afirma que o pecado não é uma mera transgressão da regra. O sentimento de culpabilização é a questão central do pecado. O pecado cria um sentimento psicológico de interiorização de culpa por ter rompido ou transgredido os interditos. Mas essa interiorização não se dá apenas objetivamente, mas subjetivamente, pois, para a interiorização da culpa do pecado, é necessário ter uma consciência moral.
Na tradição do Antigo Testamento, por exemplo, havia um forte rigorismo dos judeus. Conforme as prescrições do Talmud, para livrar-se do pecado eram necessários rituais de purificação. Leituras do código deuteronômico (21:6)11 e Levítico (16:30) prescrevem práticas de purificação dos pecados. Portanto, o pecado na tradição judaica estava mais identificado nas práticas de idolatrias, assassínios e incestos12.
Por conseguinte, as Igrejas cristãs desde os primeiros séculos, já determinavam os chamados remédios de purificação [asceticismo]. A purificação é realizada por meio de exercícios espirituais externos (rituais, abluções, sacrifícios) ou internos (penitências, cristandade ter um código de conduta moral, consoante aos preceitos da doutrina estabelecida.
Na contemporaneidade, entre os estudiosos do pensamento materialista, Hesnard afirma que o pecado, o ódio e a culpa são sentimentos contra a natureza humana. A moral está associação a uma forte perspectiva econômica; a ideia de culpa não está no sentido subjetivo individual, mas no sentido coletivo em razão da desigualdade provocada pelas injustiças sociais. O pecado serve, por esse ângulo, apenas como um véu para encobrir as profundas contradições de classes sociais. Hesnard ataca a ideia moral religiosa, da moral do mito sexual, e apela para uma moral onde, o mal só existe, efetivamente, quando o ato é intencional e que prejudica outrem14.
Para Heidegger, a consciência moral é que gera o sentimento subjetivo da culpa. Não é, desta maneira, uma culpabilidade objetiva, constitutiva da transgressão da norma; no caso do cristianismo, há uma perspectiva atávica do pecado, por causa do chamado pecado original.15
Com uma discussão voltada para o conceito de hierofania16, Mircea Eliade analisa a perspectiva agostiniana da negação ontológica do mal, ou seja, o mal não existe, é apenas a ausência do bem (privatio boni). Contraditoriamente, Agostinho assevera que o pecado é ingênito – é hereditário – ao homem em razão do pecado original de Adão e Eva. Ao mesmo tempo afirma uma ideia atávica do pecado, por outro lado, também deixa claro que o ser humano é dotado de vontade e pode por desejo cometer o pecado conscientemente. Para solucionar esse dilema, Agostinho utiliza a sua teoria da predestinação, a qual trata da presciência de Deus; Ele [Deus] teria previamente organizado as coisas no tempo. Mesmo o homem dotado do livre arbítrio, a liberdade, necessariamente alguns deveriam ser salvos, alguns deveriam sofrer a danação eterna. A chave contaminadora do pecado, segundo Agostinho, era o ato sexual.17
Numa perspectiva medieval, Delumeau discorre longamente sobre o pecado associado ao sentimento de medo e pavor. Para isso, a sua elaboração parte de uma premissa que a ideia do contemptus mundi [desprezo do mundo]. Trata-se da concepção de que para livrar do pecado é necessário negar o mundo.
Desde o fim dos tempos antigos, a doutrina da vacuidade do mundo (e, portanto, do desprezo que ele merece) encontrou nos meios eclesiásticos do Egito e do Oriente um termo de eleição: ela constituía um protesto dos ascetas contra um Cristianismo que lhe parecia tornar-se fácil demais. Em seguida, ao longo de toda a Idade Média, ela nutriu a espiritualidade dos conventos. (…) O mundo é vão por que é passageiro.18
Assim, o ascetismo, nos primeiros séculos, foi uma prática recorrente entre os monges. Diversos monges, por meio de pregações, instruíam que era necessário desprezar o mundo para atingir a purificação.
Para desenvolver esse raciocínio, Delumeau utiliza, com vasta erudição, uma narrativa muito bem alinhavada para explicar o fenômeno da fuga mundi [fuga do mundo]. Ele inicia sua explicação, afirmando que entre os filósofos da Patrística, receberam grande influência da reflexão grega, neoplatônica, a inferiori corpora, isto é, o corpo como algo inferior e que aprisiona a alma. Santo Agostinho, cita Delumeau, na sua obra Civitas Dei, explica que a cidade dos homens e a cidade mortal, e a cidade celeste é a morada definitiva da alma. E para alcançar essa morada definitiva, deve-se desprezar a cidade dos homens, marcada pelo pecado. Delumeau descreve vários exemplos para justificar as razões do desprezo do mundo, que era realizada não só entre os monges, mas também entre os leigos, os quais expressavam a ideia do desprezo do mundo por meio da arte e da literatura19.
Chadwick explora a questão do pecado atinando ao tema do livre arbítrio. A questão da ação humana é fruto da escolha, a qual é guiada pela vontade. O ser humano pode realizar ato de bondade, se tiver dentro de si valores de coragem e virtude, mas
também pode realizar atos malignos se caso seja orientado por valores como a miséria e o mal. Ressalta Chadwick que o pecado, portanto, segundo Agostinho, é fruto da escolha humana em decorrência da falha de seu caráter. No entanto, Agostinho tem uma questão: os anjos, que são seres divinos, não humanos, dotados de bondade, também tiveram alguns que não seguiram a vontade de Deus e assim caíram. Por que, então, alguns anjos caíram e outros não? Para resolver a questão Agostinho se utiliza de Plotino, pensador platônico, para tentar solucionar a questão. A partir dessa questão, Agostinho elabora o que foi futuramente sua teoria da predestinação.
We have seen that Augustine preferred to locate the root of evil in the soul’s instability (…). The soul’s weakness was for him the immediate, if not necessarily of the all-sufficient, cause of sin. Yet he saw this instability of the soul inherent in the very fact of being created of nothing and therefore ‘contingent’, liable to be driven off course.20
E continua:
The dilemma here long troubled his mind. Why, he asked, did some angels fall while others did not? In his maturity it seemed to him inadequate to speak about random chance and causelessness. To meet the difficulty he turned to a doctrine of predestination.21
Chadwick observa, nas leituras de Agostinho, que a fraqueza da alma humana é inerente, intrínseca à natureza humana; é um estigma que permanentemente marcará os demais seres humanos, portanto a humanidade, ao eterno pecado. Mas põe em discussão uma questão: se o ser humano nasce ignorante e necessita de alguém para orientá-lo a não praticar o mal e o pecado, como o pecado é pratica inconsciente? Por isso, Chadwick foca na doutrina da predestinação de Santo Agostinho, ou seja, Deus predestinou o ser humano, segundo Agostinho, à salvação. O desvio dessa salvação gratuita é de responsabilidade do indivíduo 22.
Abordando também a ideia do mal, Evans aponta uma tendência pessimista de Agostinho, como que um aprisionamento. O pecado original, com efeito, teria alterado a natureza humana. O homem vive um conflito permanente entre o querer libertar-se do mal e a recorrência ao mal por meio dos desejos da carne. O pecado condenou a humanidade.
A solução de Agostinho do problema do mal levou-o no fim a uma posição extrema. O mal consiste no ato da vontade livre de uma criatura que se afastou do bem. Quando Adão caiu, toda a raça humana que dele descenderia foi condenada com ele; tornou-se uma massa dammata. A própria natureza humana foi mudada, de tal sorte que a vontade não mais podia na prática escolher o bem sem ajuda. Ela desenvolveu uma tendência de fuga a querer o mal, resultando que o querer tornou-se concupiscente e os desejos excederam os limites da razão23.
Em se tratando do pecado e as relações de gênero, Ashley centra-se no papel que a mulher representou na cristandade. Argumenta que as relações de hierarquização e o papel de submissão da mulher, tanto na literatura teológica, quanto nas relações de poder da Igreja, se deram em razão da mulher ser a responsável pela introdução do pecado original. Citando Agostinho, Ashley assevera que a doutrina do pecado original construiu uma identidade feminina relacionada uma representação do pecado. O pecado entrou no mundo pela ingenuidade da mulher em ter ouvido a voz da serpente e ter desobedecido ao Criador, conforme o mito da criação no Gênesis.24
AGOSTINHO, PECADO E MEDIEVALIDADE
Nas escrituras bíblicas do Antigo Testamento, por exemplo, a concepção do pecado era presente nos costumes do povo judeu. De acordo com a tradição bíblica, percebe-se que o pecado originou-se do mundo angelical, conforme relato em João (8:44) A desobediência de Satanás a Iaweh, o Criador, expressou ser a gênesis do mal. Por esta razão, o Diabo tornara-se a representação do pecado desde o princípio, afirma 1 João (3: 8).
Já entre os homens, Agostinho afirma que o pecado foi ato voluntário, o que constituiu, segundo ele, o “pecado original”25. A primeira mulher, Eva, conforme o relato bíblico do Gênesis capítulo 3, ao desobedecer ao Deus-Criador Iaweh e comer do fruto do conhecimento originou o pecado entre os seres humanos. Declara Agostinho que o pecado original manchou de toda a sorte a estirpe humana por toda a história26.
Alhures, o pecado, concebido na experiência histórica, remeteu-se a outra questão que é a sua consequência: a ideia da culpabilidade. No mundo Ocidental cristão há um excesso de sentimento de culpa introjetado nos indivíduos, mediante a inculcação da cristandade por séculos27.
Por outra lente, entre a Patrística, seja grega ou latina, além de Agostinho de Hipona os diversos Padres da Igreja28apresentaram suas interpretações acerca do pecado, sendo que alguns foram censurados, tendo suas interpretações consideradas heréticas, tais como Pelágio, Donato, Ário, etc29.
O argumento de Agostinho para a causa do pecado é que o sujeito humano possui o livre arbítrio dado por Deus. E com este livre arbítrio o homem é dotado de atrações, sobretudo nas relações recíprocas. As atrações, que são sentimentos intrínsecos aos seres humanos, tornam o homem um ser de desejos. Portanto, há um embate entre o querer e o poder. Neste contexto, constroem-se os interditos como forma de reprimir o pecado. Afirma Agostinho que “existe certo atrativo num corpo belo, no ouro, na prata, e em todas as coisas”30.Assim, os sujeitos que não vivem ou “obedecem” às regras e aos cânones da cristandade, que regula os maus hábitos, vivem em estado pecaminoso31.
Isso posto, em um contexto histórico marcado pelo paganismo do Império Romano – Império este em crise desde o século III – ou mesmo no momento de penetração incipiente do cristianismo institucionalizado paulatinamente pela Igreja, o pecado tornou-se um tema premente dos Padres da Igreja.
Adiante, Agostinho, nos capítulos VI e VIII da supracitada obra, aborda acerca da inocência da criminalidade, apontando para dois sentimentos que induzem o homem ao pecado: os sentimentos de “iniquidade” e o de “cumplicidade”32.
O homem, para não cometer pecado, quer ser um imitador de Deus. Entretanto, o que poderia livrar o homem do mal, paradoxalmente, pode conduzi-lo, também, ao pecado. Pois o homem tão-somente não quer imitar a Deus, mas transcender essa relação e querer “igualar” a Deus, o que seria um gesto herético. Argumenta Agostinho
“A crueldade dos tiranos quer ser temida; porém, quem há de ser temido senão Deus (…). As carícias da volúpia buscam ser correspondidas; porém, nada há mais carinhoso que tua caridade (…). A curiosidade sugere amor à ciência, enquanto só tu conhece plenamente as coisas (…). O luxo gosta de ser chamado de fartura; mas só tu és a plenitude e a abundância inesgotável (…). A prodigalidade veste-se com a capa da liberalidade; porém, só tu, és verdadeiro e liberalíssimo doador de todos os bens (…). A avareza quer possuir muitas coisas; porém, só tu as possui todas (…). A ira busca a vingança; e que vingança mais justa que a tua?33
Por isso, para Agostinho, em sua teologia da história, o homem historicamente é marcado pelo pecado. E somente Deus, o Todo-Poderoso que é justíssimo e puríssimo, poderá salvá-lo, desde que se arrependa de sua culpa e volte seu olhar para este Deus Altíssimo34.
Alhures, analisando um pouco mais o tema do pecado original, este foi um discurso sistematicamente utilizado para dar sentido às doutrinas cristãs durante a Idade Média. Muitos autores reforçaram a ideia do pecado original, entre eles o monge Anselmo de Aosta, arcebispo de Cantuária. Anselmo aceita a ideia do pecado original. Todavia, refuta os ensinamentos de alguns manuais de sentenças – Pedro Lombardo, por exemplo – que afirma o pecado original como por natureza a concupiscência. A concupiscência, segundo ele, é um ato consciente, essencialmente voluntário, que não está na natureza do pecado original, sendo este apenas uma privação da justiça de origem35.
A teoria do pecado original de Agostinho alonga-se até a Alta Idade Média. A base empírica para a explicação dessa teoria é que o pecado é uma contaminação hereditária iniciada em Adão e transmitida, na natureza humana, por toda a humanidade e por todos os séculos36.
Durante a Idade Média, diversos teólogos atestaram esse discurso e realizaram discussões acerca da natureza do Pecado. Pedro Abelardo afirmava que o pecado não era a mesma coisa que vício. O pecado é um ato que exige deliberação, portanto, consciência, intencionalidade, enquanto que o vício é uma ação neutra, involuntária, embora pecaminosa, entretanto, não sofria tanto anátema quanto o primeiro37.
Pedro Lombardo, por exemplo, afiança essa tese, no entanto, aprofunda-a por meio da ideia do que ele chamou de interioridade humana. Relaciona a interioridade da consciência, a moralidade do ato e a ética das ações exteriores. Lombardo sublinha a primazia da interioridade da consciência no ato de pecar. A consciência e a moralidade do ato, contudo, não faz concessões no tocante ao vício, que também está na interioridade da consciência em desagravo à transgressão moral ao infringir a vontade divina.38.
Tomás de Aquino, na esteira de Lombardo, acrescenta a essa ideia à consciência racional, incorporando elementos teóricos da reflexão aristotélica. O pecado divide-se em dois termos, conforme a reflexão tomista: o ato de pecar, isto é, ato humano, e a transgressão enquanto um elemento formal, pois a transgressão se opõe aquilo que é a causa final da existência cósmica, isto é, as leis eternas. Pecar portanto, para Santo Tomás de Aquino, é não conformar-se à lei divina39.
Quanto à classificação, o pecado recebeu, ao longo da Idade Média, inúmeras determinações. A mais clássica elaborada no século V pelo monge Cassiano e propagada ao longo dos séculos, baseia-se na ideia dos pecados capitais, ou também pecados mortais. Há uma hierarquização entre eles, sendo que o maior pecado é o orgulho, carro-chefe que comanda os demais sete pecados: inveja, cobiça, gula, preguiça, luxúria, vaidade e ira40.
Outra formulação, bastante conhecida, é a divisão entre pecado mortal, passível da danação infernal, e os pecados veniais, considerados pecados leves, que podem ser expiados. Segundo a Igreja as classificações eram importantes porque através delas é que prescrevia as penas para expiação dos pecados41. Não sem razão, é neste contexto que se inicia a estruturação do código de direito canônico, determinante para a discussão jurídica do pecado, do crime, da culpa, etc.
Percebe-se que ao longo da Idade Média, a discussão acerca da penitência intensifica-se. Na tradição Antiga, a confissão era pública. No século VII na ilha britânica, contudo, a confissão ganha novo sentido, pois nessa comunidade ela era realizada de modo privado. Destarte, a confissão foi regulamentada pelo Concílio de Latrão de 1215. Alguns teólogos elaboram fórmulas para realizar confissão: Pedro Abelardo, por exemplo, destacou a contrição do coração, a confissão de boca e satisfação das obras42. A Igreja elaborou um receituário de fórmulas para que os fiéis possam expor declarar e dizer seus pecados. Estabeleceu-se uma triangulação entre o sentimento de culpa interior, a sua “dizibilidade” e a ação por meio dos sacrifícios43.
De outra sorte, os franciscanos, por meio das suas ordens mendicantes, tiveram papel pedagógico no “combate” do pecado por meio da exempla, ou seja, o testemunho era um método utilizado para obter conversões. O pecado, portanto, deixa de ter uma dimensão meramente teórica e fixa-se nas ações do cotidiano44.
Na Baixa Idade Média, o pecado está associado às novas práticas sociais decorrentes do surgimento de novas camadas sociais emergentes como os banqueiros. Dessa maneira, o pecado da cobiça será rigidamente criticado, em razão da acumulação de capital. Com o advento desses novos elementos sociais, a preguiça também era criticada porque foi um pecados mais acentuados por séculos em razão do ócio como contraponto ao trabalho exercido como algo penoso. Por fim, o pecado da luxúria também ganha maior visibilidade em razão das novas formas de relações de gênero que se iniciavam na modernidade45.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisar a posição da Igreja no contexto da queda do Império Romano do Mediterrâneo Ocidental a partir do discurso do pecado, nos faz pensar nas possibilidades que o cristianismo penetrou no Ocidente, esboroando tradições seculares cultivadas pelos romanos e demais povos.
No mundo antigo, a conquista de espaço com o intuito de construir novas instituições e novas relações, necessariamente a guerra foi um instrumento sistematicamente utilizado para imposição de poder. Os povos dominados pelos diversos impérios constituídos na Antiguidade hauriam os valores a eles impostos, sendo que após várias resistências fracassadas ou mesmo de modo tácito.
No caso da Igreja cristã, tal imposição se deu modo muito sutil. As práticas de martírio, de ascetismo, de penitência, de oração são algumas das formas utilizadas pela Igreja sobre os chamados fiéis no contexto dos primeiros séculos. Neste período, a Igreja não tinha a hierarquia consolidada, nem o seu corpus doutrinário universalmente instituído. Quanto aos citados “fiéis”, cabe ressaltar que não eram desprovidos de um arcabouço cultural que desse sentido as suas comunidades. O “exército” formado pela Igreja era constituído de sacerdotes, teólogos, monges, eremitas. Eles foram indispensáveis para a disseminação desse discurso. Agostinho, certamente, é um dos expoentes dessa ação; sobretudo no campo intelectual, na construção de representações e até mesmo da própria doutrina da Igreja que não gozava de uma unidade.
Por esta razão, o pensamento agostiniano foi relevante para a compreensão de um tipo de comportamento, ou pelo menos foi determinante na elaboração de concepções que arraigaram a dimensão subjetiva do indivíduo, como no caso o sentimento de culpa produzido pelo pecado, mas ao mesmo tempo a reincidência do ato pecaminoso praticada pelos seres humanos; bem como por se tratar de uma meta- narrativa, que produziu representações de efeitos de verdade, delineando, assim, um sentido da história.
REFERÊNCIAS
Fontes
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