Os cristianismos da tradição Patrística em disputa ao longo da Bacia Mediterrânica

Conflitos de formulações teológicas na Antiguidade
Introdução
O presente artigo tem por norte apresentar uma discussão, em caráter preliminar, sobre a questão das relações do Cristianismo primevo, com ênfase nos séculos IV e V, entremeados na Bacia Mediterrânica que formavam polos de constituição de identidades cristãs
– Hipona e Alexandria, no norte africano, Jerusalém, na Palestina, Antioquia, na Ásia Menor, e Roma, na Itália – e que se conflagravam como possibilidade de formar uma hegemonia na cristalização de uma ortodoxia da Ecclesia em construção naqueles períodos.
O estudo esforça-se por visualizar que, para além dos estudos tradicionais e historiográficos sobre as disputas exógenas com os grupos ditos heréticos, haviam disputas endógenas com os núcleos ditos não heréticos ou não cismáticos. Nesse ínterim, tem-se Agostinho de Hipona como um privilegiado interlocutor, um importante intelectual da Patrística latina, que dialogou, debateu e combateu diversas correntes de seu tempo sobre que os princípios e métodos a “palavra de Deus” deveria chegar aos “não-convertidos”. Assim, na esteira de diversas ideias e pensadores da Patrística, as formulações agostinianas forneceram as bases do pensamento ocidental cristão para compreender e elaborar o que se convencionou chamar de doutrina cristã. Para aquele pensador, a Igreja tornou-se uma instituição privilegiada para propagar a fé cristã entre os chamados pagãos, bem como ser a depositária da Graça na missão de combater o mal e igualmente de qualquer doutrina errática que viesse ameaçar as “verdades cristãs”.
Diante disso, na tradição da Igreja, construiu-se a imagem em Agostinho como um combatente “incumbido” da tarefa de enfrentar os discursos supostamente heréticos de movimentos estranhos ao ordenamento cristão; por conseguinte, como essa tradição em disputa confere instrumentalização discursiva de vocalização de grupos em disputas no interior da Igreja na modernidade.
O foco das linhas que se seguem foi mostrar que a ideia de uma “unidade cristã” sempre foi uma problemática da tradição eclesiástica e que os novos estudos historiográficos têm permitido alguma concertação quantos aos polos católicos em conflito. Por isso, enseja-se aqui um dimensionamento das disputas internas face às inúmeras propostas teológicas para a corporificação de uma ortodoxia da cristandade, em especial, o discurso agostiniano no tocante à formulação de uma Teologia da História[1] por meio de sua obra intitulada A Cidade de Deus.
A organização da Igreja nos primeiros séculos do Cristianismo
Um dos temas importantes relacionados à Igreja do período pós-apostólico é a questão da formação da hierarquia, com longos estudos sobre a dimensão hierárquica do primado papal. A Igreja do século IV, muitas vezes, é descrita por certos estudos eclesiásticos modernos, sobretudo, da tradição institucionalista francesa, como similar à Igreja medieval[2].
Todavia, tem-se que a estrutura eclesiástica nesse período era desprovida de aparatos burocráticos e de hierarquia centrada na figura do “papa”. Segundo McBrien (2008, p. 99), a noção de papa não era tão clara, pois usava-se apenas a expressão “bispo de Roma”, cuja consolidação como papa efetivou-se somente com Leão I, no século VI.
A ausência de centralismo na figura papal era preenchida por outro mecanismo hierárquico, fundamental para a organização política da Igreja. Essa hierarquia estava organizada nas redes episcopais, constituídas por vários estratos sociais e formadas por grupos de bispos em circunscrições geográficas determinadas e alinhadas por afinidades teológicas, ascéticas ou mesmo econômicas e políticas.
Rapp (2005, p. 174-175) destaca o aspecto da formação do episcopado, bem como a sua manutenção. A origem social dos bispos poderia ser proveniente tanto de estratos mais aristocratizados, bem como de estratos mais humildes, até mesmo de escravos. Aquela autora explica que a manutenção do episcopado se estabelecia através de vínculos fraternais sólidos. Para suas redes sobreviverem materialmente, os bispos colaboravam para uma espécie de fundo de manutenção, bem como para a formação de prelados. Antes deles se tornarem bispos, grande parte detinha alguma renda devido ao vínculo com algum ofício – eram artesãos, artífices, médicos, tecelões etc. Com isso, doavam proventos financeiros para esse fundo mantido de modo colegiado. Ou seja, no século IV, os bispos passaram, provavelmente, por uma espécie de “profissionalização”, que possibilitou maior força entre o episcopado e granjeou mais influência nas ações do cotidiano entre os fiéis (RAPP, 2005, p. 176). Desse modo, à medida que esses bispos ingressavam no episcopado, eles formavam o corpo episcopal responsável pela atuação pública da Igreja, até mesmo com representação junto ao Estado romano.
A princípio, não se exigia formação intelectual dos candidatos para o ingresso ao episcopado, cujo principal requisito centrava-se nos aspectos de cunho moral. Com isso, o currículo para se tornar bispo sedimentava-se com maior ênfase na sua vida moral pregressa do que na sua amostragem intelectual. A única exigência intelectual requisitada era que os bispos fossem pelo menos alfabetizados e pudessem compreender minimamente a leitura das Escrituras (RAPP, 2005, p. 179). No período de Constantino, porém, esse modelo mudou, pois passou a incorporar bispos, na maior parte das vezes, de origem aristocrática, que tinham acesso às letras com mais profundidade. Havia alguns centros que possibilitavam uma formação mínima para os futuros bispos. Orígenes de Alexandria, por exemplo, recebia alunos que eram preparados na arte da retórica, dominavam o grego e o latim, e conhecia os filósofos gregos (EUSÉBIO DE CESAREIA, 2000, p. 281). Dessas escolas participavam presbíteros, leigos e até mulheres (EUSÉBIO DE CESAREIA, 2000, p. 286).
A formação educacional no Império Romano Tardio, após as reformas de Diocleciano e Constantino, passou a ter maior presença entre os setores mais aristocratizados. Em diversas ocasiões, estes recrutavam jovens para ocupar cargos públicos e, nessas circunstâncias, muitos se tornavam bispos. Assim, no universo episcopal, as diferenciações educacionais expressavam-se pela situação geográfica, isto é, os bispos de cidades maiores e urbanizadas tinham mais instrução do que os bispos de cidades menores e ruralizadas (RAPP, 2005, p. 181).
A localidade geográfica também expressava a composição social do episcopado. Na Itália, grande parte dos bispos era oriunda da aristocracia, sendo uma parte do segmento curiale – setores médios municipais da aristocracia – e a outra parte proveniente do segmento senatorial. Entre os séculos III e IV, da fração aristocratizada, a maioria provinha dos curiais, pois, o seu número era superior ao de senadores.
Com a decadência do Império Romano, sobretudo, no período da imigração dos povos germânicos, tanto na Gália como na Itália, grande parte do segmento senatorial, com o temor de perder seu status quo, ingressou na vida religiosa ocupando as sés episcopais. Havia um preceito canônico que permitia a ordenação de bispos sem histórico de vida religiosa pregressa. A respeito do acesso de famílias à dignidade de bispo, Rapp (2005, p. 188-189) explica que tal fenômeno tornou-se mais frequente na Itália no século V. Já na África, a maioria dos bispos não era proveniente dessa base aristocrática.
Não obstante, outro fenômeno detectado por Rapp (2005) é que muitos bispos, embora tivessem pretensões políticas ao ocupar o cargo episcopal devido ao prestígio social, detinham certo fervor pela prática cristã, mesmo que provenientes da aristocracia. Aquele autor aponta dois exemplos: o primeiro, Ambrósio, bispo de Milão, cuja ascendência era nobre, sendo seu pai um praefectus curiales. Ambrósio ingressou na vida religiosa com enorme fervor cristão, embora sua família não fosse de tradição cristã; o segundo, Paulino, bispo de Nola, também proveniente da aristocracia. Diferente de Ambrósio, Paulino renunciou à sua riqueza, tornando-se asceta, sendo ordenado diácono e, após dez anos de sacerdócio, tornou-se bispo de Nola. Vale destacar que os exemplos supracitados não eram constantes, pois, grande parte do episcopado sequer tinha qualquer prática ascética.
Para Rapp (2005, p. 189), o episcopado italiano era o mais afeito à tradição de nobilitas. A Igreja italiana tornou-se muito aristocratizada e buscava aumentar seu prestígio entre os fiéis. Nesse sentido, construiu aparatos financiados pelo Estado. O Código de Teodósio possibilitou o estreitamento dessa relação de influência, publicando decretos determinando que os servidores da máquina estatal romana fossem cristãos.
Em 418, no Concílio de Cartago, uma determinação canônica altera o aspecto identitário dos bispos. Antes desse acontecimento, muitos bispos acumulavam funções públicas no Estado. Exerciam o múnus episcopal e, concomitantemente, eram agentes públicos do Império (RAPP, 2005, p. 206). Após tal Concílio, os bispos determinaram que o ministério fosse exercido de forma exclusiva, proibindo o acúmulo de funções.
Com isso, vários bispos tiveram que optar por abandonar as funções públicas que exerciam ou deixar o ministério episcopal. Aqueles que não fizessem alguma opção eram sumariamente destituídos da dignidade de bispo e, até mesmo, excomungados da Igreja (RAPP, 2005, p. 207). Há casos de bispos que usaram sua nobre influência em Roma para lograr junto ao imperador outra função pública, a fim de que, ao abandonar o ministério episcopal, não ficassem desamparados e sem provisões ou renda, mantendo, assim, o padrão de vida aristocrática.
A formação do episcopado configurou a estrutura organizacional da Igreja, nas regiões de maior presença católica, ou seja, na África, na península Itálica e no Oriente helenizado. As redes de bispos, tal como estavam organizadas, demonstravam que a Igreja do século IV não era tão inorgânica quanto parecia, pelo menos no tocante ao corpo do episcopado.
Por isso, compreender essa configuração é parte indispensável para entender a montagem da formação do clero, sobretudo, na Antiguidade Tardia, caracterizada como um período de transição, face à crise romana ocidental, especialmente no momento das incursões germânicas.
Os concílios e as redes episcopais
Após o período dos pais pós-apostólicos, os católicos se empenharam por definir a doutrina cristã. E para definir doutrinas ou dogmas, os bispos reuniam-se em assembleias: sínodos ou concílios[3]. Os primeiros concílios debateram, sem grandes elaborações, qual deveria ser a compreensão da Teologia Ortodoxa. No Concílio de Jerusalém, por exemplo, entre vários problemas teológicos, a questão do pecado foi pouco debatida, embora fizesse parte da pauta de discussão. Bellito (2002, p. 34-38) menciona que no Concílio de Nicéia, em 325, também pouco se debateu sobre tais questões, pois, o foco era a controvérsia ariana.
Na Igreja dos primeiros séculos da era cristã, destacaram-se vários movimentos internos em disputa, para demarcar qual era o detentor do controle da ortodoxia. Tais disputas criaram uma série de grupos e partidos, cada qual com seus correligionários, quais sejam, bispos e presbíteros, tendo aqueles na dianteira, que em diversos momentos entraram em conflito. Além disso, a Igreja da Itália tinha sensibilidades distintas da Igreja africana e, por conseguinte, da Igreja no Oriente.
Dessa maneira, as redes episcopais se tornaram expressão de força que, em várias situações, chocavam-se com a autoridade do bispo de Roma, o papa, a quem caberia liderar a Igreja – aliás, uma liderança que não tinha muita definição quanto ao alcance de seu poder.
Por isso, nos primeiros séculos do Cristianismo, as redes episcopais eram as “principais peças desse xadrez” denominado Igreja. As relações de tais redes episcopais era o resultado de diversas esferas da vida social, mantendo alguma influência sobre a vida política. Em virtude de uma série de disputas e controvérsias das mais variadas ordens, os bispos reuniam-se de tempos em tempos também via concílios para dirimir conflitos. Os concílios, dessa forma, tornaram-se uma experiência significativa na formação da Igreja do século IV.
Nesse conjunto de debates teológicos, fundamentados em filosofias diversas, em especial, de matriz greco-romana, constitui-se o que poderia designar de uma tradição teológica cristã e que veio a convencionar os Pais da Igreja, ou Patrística. No entanto, os estudos dedicados à Patrística apontam que a “unidade” dessa possível tradição não era tão coesa e linear quanto se parecia crer nas representações dos discursos eclesiásticos contemporâneos. Sobre a questão, Kelly (1994, p. 3) assinala:
Por estar ainda em fase de formação, a teologia dos primeiros séculos apresenta os extremos de imaturidade e de refinamento. Existe, por exemplo, um contraste extraordinário entre as versões do ensino ministrado pelos pais apostólicos do segundo século e um teólogo competente do quinto século […]; e era comum certos pais (Orígenes é um exemplo clássico), mais tarde considerados heréticos, serem contados entre os ortodoxos enquanto viviam.
Diante desse contexto, Agostinho não estava alheio a esse foro de disputas. A tradição cristã o “institucionalizou” como porta-voz do partido hegemônico da Igreja, isto é, dos católicos. Nesse sentido, os concílios também eram espaços privilegiados para ecoar os discursos como força da Igreja. A título de exemplo, em maio 431, o papa Celestino I, na linha de seus predecessores, considerou Agostinho como um dos grandes “mestres da Igreja” – importante para preservar “a verdade” para o povo cristão:
Esse homem de santa memória, que é Agostinho, em razão de sua vida e de seus méritos, nós sempre o tivemos em nossa comunhão e jamais o boato de uma suspeita desonesta o prejudicou. Nós recordamos que possuía tal ciência que meus predecessores sempre o consideraram um dos melhores mestres (CELESTINO I, 1846, p. 530)[4] (grifo meu).
Ou seja, os católicos reconheceram publicamente Agostinho como um dos grandes defensores da ortodoxia. As formulações teológicas do bispo de Hipona, que fundamentavam os princípios da ortodoxia consoante à perspectiva do partido católico, foram legitimadas nesses fóruns. Mesmo depois de sua morte, Agostinho foi relembrado como um dos elaboradores da doutrina católica. Novamente, a título de exemplo, tem-se uma carta do papa Hormisdas, de 13 de agosto de 520, às vésperas do Concílio de Orange, que comenta sobre a doutrina do livre arbítrio e da Graça, quase um século após a morte de Agostinho:
Sobre o livre arbítrio e a graça de Deus, observava-lhe ele, ainda que se possa reconhecer tranquilamente o que a Igreja romana, ou seja, católica, segue e guarda, com base nos diversos livros do bem-aventurado Agostinho […] (HORMISDAS, 1847, p. 493)[5].
Mesmo com a existência canônica da Sé de Pedro, simbolizada na figura do papa, frequentemente fazendo referência a Agostinho, a propagação dos dogmas católicos era mobilizada pelas redes episcopais, mediante a legitimação da colegialidade nos sínodos e concílios. Igualmente, tem-se o cumprimento de doutrinas, teses e decretos eclesiásticos aprovados nos concílios, constituindo “a vontade de Deus”. A não aceitação das doutrinas aprovadas nos concílios era gravissimum peccatum.
Seguramente, o anátema foi um dos mecanismos que, com efeito, mais estimulou o cumprimento dos cânones da Igreja em toda a cristandade; e, mesmo que outras redes episcopais não concordassem com a oficialização de alguma tese ou algum decreto, o discurso moral, objetivamente, foi, entre outras coisas, um dos principais mecanismos para dar sentido aos efeitos de poder entre os pares da Igreja, bem como entre a sociedade civil[6].
Por isso, obter o controle da ortodoxia era fundamental para maior influência nos espaços colegiados, em especial, nos sínodos e concílios. Dessa maneira, questiona-se: a quem mais interessava o controle da moralidade sobre os corpos? Sem dúvida, ao partido católico, pois era ele o detentor político da ortodoxia. Silenciar as vozes dissonantes era o meio de “pacificar” os conflitos existentes no interior da Igreja desse momento.
Por outro lado, o discurso do mal moral também era ressignificado pelos setores contrários aos católicos. As distintas formulações da doutrina do partido católico eram apropriadas por esses segmentos. À guisa de exemplo, tem-se a Igreja donatista, que acreditava na plena pureza dos sacerdotes como meio de validação dos sacramentos por eles administrados, e os pelagianos, que divergiam da ideia do pecado original.
Evidentemente, a própria Igreja ainda construiria instrumentos que validassem o poder, até mesmo frente ao Estado romano, uma vez que este interferia nos assuntos eclesiásticos. As dificuldades da Igreja, em determinadas situações, encontradas do século IV de fazer valer o poder, em uníssono, é uma das questões mais problemáticas por ela enfrentada. Mesmo porque o próprio grupo hegemônico da ortodoxia não tinha visivelmente a dimensão de uma Igreja constituída de aparato burocrático, que funcionasse como uma rede abrangente de poder.
Para tanto, nos discursos de Agostinho, tem-se a manifestação de um tipo ideal de catolicidade da Ecclesia. A expansão do Cristianismo, quer seja através de templos e monastérios, quer seja por meio da constituição das redes episcopais, era um dado novo no século IV e início do V. Tal expansão católica, sobretudo, no interior da África, mesmo com a iminente invasão dos vândalos, e também com a expansão pelo interior da Gália e da península Ibérica, era sinal de consolidação do projeto católico.
Dessa feita, Agostinho foi um importante quadro da Igreja de Hipona. Após a conversão, dedicou sua vida ao projeto de institucionalização da Igreja. E os concílios foram eventos acompanhados por ele, participando indiretamente de alguns e pessoalmente de outros, sendo, às vezes, voz decisiva nas votações do colegiado.
Por essa razão, a organização das redes episcopais é um caminho interessante para pensar como a Igreja ganhava força nos séculos IV e V. A falta de centralismo deu condições para o terreno de atuação das redes episcopais. A Gália foi primeiro lugar onde se experimentou o aumento do poder dos bispos. Tal empreitada deveu-se à ocupação dos francos, que haviam removido o poder do Império naquela região. Assim, os bispos passaram a controlar as principais cidades gaulesas. Igualmente, essa experiência se repetia na Germânia. No caso da África, também floresceram as redes episcopais ao longo da Bacia Mediterrânica. No entanto, tinha-se ali um terreno mais complexo em razão das diversas divisões no interior do episcopado, especialmente, por causa dos donatistas que tinham maior influência na região.
Por isso, os vários concílios realizados na África foram o meio pelo qual as redes episcopais hegemônicas logravam somar alguma força. E, ao destacar as lideranças dessas mobilizações, coloca-se o bispo de Hipona no proscênio; foi o principal interlocutor de “combate” às incursões ditas heréticas e cismáticas. Consagrado bispo em 391 por Valério, ganhava prestígio entre os seus pares, e mantinha coesa a rede de bispos com quem tinha proximidade – Aurélio de Cartago, Evódio, Alípio e Possídio, por exemplo.
Ademais, os discursos de Agostinho, por vezes, mesclam asceticismo e práticas pagãs, servindo ao enquadramento da doutrina moral que a Igreja precisava; isto é, o indivíduo pecador tem sempre a certeza de que Deus é a misericórdia para redimir seus pecados[7]. Isso não quer dizer que o discurso agostiniano fosse conivente com a prática pecaminosa, pois, para ele, o cristão autêntico deveria seguir as prescrições do Evangelho. Mas percebe-se que a Igreja, como mediadora da Graça, tornava-se mais vívida com o discurso de Agostinho, pois, em sua representação, ele forjava uma face eclesial redentora. No entanto, tem-se o seguinte questionamento: como difundir essa representação entre a própria Igreja se não houvesse um foro comum que legitimasse o discurso de Agostinho? Assim, via concílios e sínodos, a ética da santidade em Agostinho foi o trunfo doutrinário da Igreja, como força de mediação e, porque não, silenciamento, das “doutrinas indesejáveis”.
Posto isso, a partir da ideia de Teologia da História de Agostinho, é possível compreender o sentido que ele atribui à sua Igreja. Na De Civitate Dei, por exemplo, vale pensar como Agostinho desenha o quadro que explicitará o poder real da Igreja e a forma de restaurar a criatura do ato pecaminoso, herdada da perda do paraíso. A Teologia da História, sem dúvida, é uma chave agostiniana que realça o horizonte de expectativa cristão, constituído de suas multifacetadas experiências no mundo terreno, rumo à Civitas Dei.
Agostinho e a De Civitate Dei como legitimação do poder da Ecclesia
Essa seria, segundo Agostinho, a forma de como eles deveriam enxergar a Igreja naquele tempo: de um lado, os pecadores arrependidos que buscam a Cristo, na sua Igreja, e, de outro lado, os pecadores que não se arrependem e continuam no mundo mortal, liderado pelas forças diabólicas, fora da Igreja. Tal dualismo consiste no mecanismo discursivo pelo qual se estabeleceu a teologia escatológica e teleológica agostiniana. A filosofia neoplatônica dualista influenciou sobremaneira a arquitetura de A Cidade de Deus. De um lado, está a “Cidade dos Santos”, destinada às criaturas fiéis à vontade de Deus, a vita aeterna; do outro lado, a “Cidade Terrena”, onde se cometem atrocidades, porque é a cidade que se louva, a Cidade do “amor próprio”.
A seguir, tem-se o exórdio mais conhecido da obra de Agostinho que representa, em parte, a síntese da Cidade de Deus:
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor-próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Glorifica-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória de Deus, testemunha de sua consciência (SANTO AGOSTINHO, 2010, p. 165).
Sendo uma das passagens mais clássicas do pensamento agostiniano, tem-se aí as linhas de condução da teologia católica. A expressão “civitas” é muito usada ao longo de A Cidade de Deus. A escolha da palavra “cidade” foi uma estratégia linguística, cujo sentido não se refere à circunscrição geográfica, tal como na grandeza física de Roma, a “dominadora do Mundo Antigo”, ou de qualquer outra cidade. Essa estratégia linguística se deve à elaboração de uma Teologia da História, de ordem universal:
Estendida pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos mortais divide-se com frequência contra si mesma e a parte que domina oprime a outra. Deve-se isso a que cada qual busca a própria utilidade e a própria cupidez e a que o bem que apetecem não é suficiente para ninguém nem para todos, por não ser o bem autêntico. […] Mas entre todos os impérios da terra em que a utilidade ou cupidez terrenas dividiram a sociedade […] pelo poder e ancestralidade […] (SANTO AGOSTINHO, 2010, p. 311-312).
Em Agostinho, a questão do universal é um elemento indispensável de sua teologia, para pensar a situação dos cristãos com relação à obra da salvação. Sua premissa parte de uma questão particular para o geral. Ou seja, o universalismo do Cristianismo advém da promessa que Deus-Yahweh fizera ao “povo escolhido”: os judeus. As maravilhas da vida eterna e do reino celestial na Civitas Dei – “um novo céu e uma nova terra”, conforme em Ap. 21:1 – foram primeiramente anunciados a eles. Porém, para Agostinho, a salvação não era exclusiva para os judeus, mas alcançavam a todos que cressem nas promessas do Criador e, por isso, os não judeus também se incluem nas suas promessas, desde que cumpram a sua vontade.
Tal perspectiva dualista na teologia de Agostinho – universalismo-particularismo – é uma representação da catolicidade de que se reveste a Igreja. Uma forma de estrutura que é, senão, a sua cosmovisão neoplatônica de pensar o universo. Partindo dessa ideia, Agostinho quer convencer que, face ao processo de crise pelo qual passava o Império Ocidental, os cristãos eram considerados o “povo eleito” para participar das promessas do Deus-verdadeiro, pois, eles estavam passando pela “grande tribulação”.
O termo “os cristãos” aplica-se, evidentemente, àqueles que se submetessem à ortodoxia. Dessa feita, Agostinho não somente dialoga apologeticamente com os ditos pagãos, bem como assinala a perspectiva ortodoxa frente aos movimentos heréticos espalhados no interior da Ecclesia.
As metáforas expressas em A Cidade de Deus, apoiadas na retórica romana, propalam a dimensão finalista de Agostinho de como compreender a história. Em realidade, elas querem apontar a permanência da ação do mal imbricado à natureza humana. As metáforas sugerem um ideal-tipo de figuras, que cumpririam seus destinos fatalmente estabelecidos pela presciência de Deus.
Para Chabannes (1962, p. 16), Agostinho assinala que há somente um Deus verdadeiro e, por isso, a humanidade está sujeita às suas leis e, inevitavelmente, à sua vontade.
Ele é, em vez disso, o Deus dos deuses pios e santos, os quais se deleitam em homenagear o Deus único, ao invés de receber a homenagem de muitos, e louvar a Deus ao invés de serem louvados no lugar de Deus (CHABANNES, 1962, p. 16).
O recurso das metáforas foi amplamente explorado em toda A Cidade de Deus, uma vez que Agostinho advertia não somente os pagãos, mas todos que se opunham à tradição da ortodoxia.
Cabe frisar que, ao longo dos 13 anos da escrita da obra, a vida do próprio bispo de Hipona foi pela história. Talvez Agostinho tivesse consciência da importância de seu papel como bispo da Igreja em Hipona, uma vez que seu episcopado era referência para as redes episcopais na África e, de seu lugar de fala, indicava os passos a serem dados para atingir seus interlocutores. A variedade de textos produzidos indicava a possibilidade de interlocução com diversos segmentos de seu tempo.
A Patrística latina ganha substancial musculatura com a obra agostiniana – base para outras formulações teológicas nelas ancoradas. Assim, ao término de suas obras, Agostinho ainda mantinha firme seu báculo para novos enfrentamentos, mesmo nos anos finais de sua vida, já doente, em sua residência em Hipona. Finalmente, em sua teologia da história sintetizava a humanidade.
Considerações finais
Os estudos dos Cristianismos emergem questões referentes ao delineamento de articulação/disputa entre as redes episcopais ao longo da Bacia Mediterrânica, que indicam realidades diversas – o que implica na ideia de se abordar o Cristianismo no plural. Especificamente no caso africano, sem prejuízo de outras experiências, o esforço de apresentar uma dimensão de historicidade de um “Agostinho político”, adstrito a um “Agostinho antropológico”, utilizando-se de um discurso teológico-filosófico, mas constituído das circunstâncias que compuseram a Igreja cristã de seu tempo, parece um caminho agudo para se pensar o porquê o Ocidente construir um personagem-monumento, como é o seu caso.
Portanto, as linhas aqui expressas buscaram tão-somente abrir, de modo muito incipiente, uma reflexão sobre a dimensão discursiva a partir das historicidades de Agostinho que deram sentido à Igreja, a construção de sua “ortodoxia”, diante de tantos conflitos e discursos entremeados no cabedal de autores da chamada Patrística – neste caso, de linha latina na sua Teologia da História.
Por fim, abrem-se, ao mesmo tempo, outras possibilidades de investigação, como, por exemplo, o confronto do aparato discursivo de Agostinho sobre a moralidade e poder com outras experiências dessa natureza no Mediterrâneo Tardo-Antigo.
Referências
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CHABANNES, Jacques. Saint Augustine: a popular life of a great saint and the times in which he lived. Tradução: Julie Kernan. New York: Doubleday, 1962.
EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica: volume 15. Tradução: Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2000. (Coleção Patrística).
GUILLEMAIN, Bernard. Les papes d’Avignon: 1309-1376. Paris: Editions du CERF, 1998.
HORMISDAS. Epistola et Decreta LXX. Paris: Migne, 1847. (Patrologia Latina 63).
KELLY, John Norman Davidson. Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã. Tradução: Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1994.
MACMULLEN, Ramsay. Voting about God in early Church Councils. New Haven: Yale University Press, 2006.
MCBRIEN, Richard Peter. The Church: the evolution of Catholicism. New York: Harper One, 2008.
OLIVEIRA, Waldir Freitas. A Antiguidade tardia. São Paulo: Ática, 1990.
RAPP, Claudia. Holy bishops in late Antiquity: the nature of Christian leadership in an age of transition. Los Angeles: University of California Press, 2005.
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus: contra os pagãos: parte II. Tradução: Oscar Paes Leme. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
[1] Por Teologia da História compreende-se a explicação metanarrativa da história apontando para uma perspectiva teleológica, um fim fatalmente destinado ou predestinado a cada mortal; em Agostinho, para aqueles resgatados do pecado, o fim seria a Civitas Dei (Cidade de Deus).
[2] É comum observar que, em muitas análises, atribui-se à Igreja do século IV características que não são constitutivas desse período, mesmo porque a noção de “Igreja” atualmente conhecida é passível de muitas discussões historiográficas quando se trata da Igreja na Antiguidade. No entanto, a tradição institucionalista francesa atribui-lhe, já nesse momento, uma dimensão triunfalista e detentora de plenos poderes frente aos chamados povos pagãos. Cf. Guillemain (1998).
[3] Para maiores informações sobre os concílios, cf. Macmullen (2006). Em sua análise sobre os concílios, aquele autor buscou examinar as relações da Igreja Católica e a incursão de elementos pagãos no seu interior.
[4] Do original: “Augustinum sancte recordationis uirum pro uita sua atque meritis in nostra communione semper habuimus, nec umquam hunc sinistrae suspicionis saltem rumor aspersit: quem tantae scientiae olim fuisse meminimus, ut inter magistros optimos etiam ante a meis semper decessoribus haberetur”. Os predecessores mencionados por Celestino I se referem a Inocêncio I em diálogo com Agostinho durante os Concílios de Cartago e Milevo nas querelas com o pelagianismo.
[5] Do original: “De arbitrio tamen libero, et gratia Dei, quod Romana (hoc est catholica) sequatur et asseveret Ecclesia, licet in variis libris beati Augustini (…)”.
[6] O termo “sociedade civil” aqui se aplica às comunidades organizadas no tecido social mediterrânico do século IV, crescentes no período tardo-antigo. O Império Romano estava passando por uma nova configuração em razão da crescente cristianização, da atuação pública dos bispos junto ao Estado romano bem como da inserção dos povos germânicos. Cf. Oliveira (1990, p. 11).
[7] Brown (2011, p. 398) explica que Agostinho, na sua fase senil, expressa uma perspectiva de misericórdia ao estabelecer que ninguém pudesse condenar ninguém, somente o Pai. Evanesce daí, uma representação caritativa de Agostinho, muito distinta de sua fase juvenil, em que transparece, por meio de seus sermões e cartas, um Agostinho rigidamente institucionalista.