As raízes do catolicismo na Antiguidade e o combate ao modernismo

A Igreja Católica foi historicamente tensionada por uma certa tradição eclesiástica e a modernidade
Introdução
Todo o desafio de esboçar uma doutrina que fosse robusta para a oferta de respostas aos questionamentos teológicos e políticos de grupos contrários ao partido católico foi historicamente a tônica do Catolicismo.
Nesse transcurso, moldou-se uma ortodoxia que foi desenhada por sincretismos, ideais de santidade e de imersão nos problemas do mundo; e, no transcurso da contemporaneidade, tem-se um permanente questionamento dos setores clericais defensores do tradicionalismo[1] quanto aos perigos de adaptação ao que se designa como modernismo[2] dentro da Igreja, sobretudo, no presente contexto de ascensão de governos de extrema direita em regiões do globo e no questionamento do Concílio Vaticano II (1962-1965) – recorrentemente acusado por parte desses setores como um concílio modernista.“
1. Uma Igreja sob tensionamentos e divisões
Parafraseando o título da obra de Jacque Le Goff intitulada As raízes medievais da Europa, de 2007, o título da presente comunicação buscou fazer uma provocação sobre algumas questões da Igreja primitiva (McBRIEN, 2008) em relação à Igreja na contemporaneidade. Nesse sentido, ao sublinhar o termo “raízes”, sugere-se um olhar sobre a construção da Igreja enquanto veículo transmissor de uma tradição, pensada aqui a partir de Taves (2011), e propagador da fé cristã nas comunidades mediterrâneas, no recorte temporal do século IV, onde o emprego do termo “católico” já era amadurecido, percebendo a constituição de códigos prescritivos e normativos para a “comunidade cristã”. Ao mesmo tempo, é preciso compreender que a Igreja contemporânea passa por processos de mudanças profundas, pelos menos nos últimos 50 anos, desde o Concílio Vaticano II, mas que, para os setores conservadores e tradicionalistas, parece sofrer de “abandono de seu passado”.
O dia 13 de março de 2013, com a eleição do Papa Francisco, parecia sinalizar uma nova virada no Catolicismo, que surpreenderia toda a Igreja, provocando distintas reações (admiração, contestação, entre outras). A “Igreja em saída” (FRANCISCO, 2013) – mote de orientação do papado do jesuíta argentino Bergolio – parecia assumir para si a marcha do Concílio Vaticano II, que, por décadas, pareceu, em alguns momentos, recalcitrante ou até mesmo declinante, tendo em vista que as reformas ali requeridas seriam demais para o corpo dirigente do Catolicismo, isto é, a Cúria. Nesse viés, Francisco questiona uma Igreja muito ensimesmada ao afirmar que “a Igreja está [com] cheiro de casa fechada” e que precisava abrir a “janela para receber o frescor do vento do Espírito Santo”. Àquela altura, parecia que a promessa de uma Igreja aberta para a contemporaneidade seria a nova tônica do papado do primeiro papa latino-americano.
Em continuidade, os setores da Igreja denominados tradicionalistas não pareciam contentes com tais mudanças, promovendo, no decorrer de quase uma década de pontificado, uma “guerra cultural” contra o governo pastoral de Francisco. A agenda contemporânea de questões morais, identitárias, econômicas, sociais e ecológicas ganham maior relevo nas prédicas do atual papa, contrariando, sobremaneira, o “jeito católico” de ser ao longo dos séculos da Igreja milenar, qual seja, um papado a serviço de si, voltado para o transcendente, para temas morais e para ação apologética, combativa, cujo teor do discurso tem sempre um olhar para o passado – uma Igreja triunfante e miraculosa dos primeiros séculos e que foi consolidada como paradigma no Concílio de Trento (BELLITTO, 2010). Para os tradicionalistas, combater o velho inimigo, o modernismo e voltar as “origens” dos tempos do Cristianismo dos primeiros séculos são ações essenciais.
Diante do exposto, pretendeu-se aqui refletir historiograficamente sobre a Igreja Católica – uma instituição milenar, marcada por uma trajetória de tensão para a guarda do que se configurou como depósito da fé (depositum fidei) (valores da ortodoxia que constituem o Catolicismo e cuja representação é de uma Igreja que permanece intacta de sua identidade milenar dos primeiros séculos – a partir das narrativas dos setores tradicionalistas e como ela tensiona com a Igreja do presente, moderna. Desde os tempos primeiros, ainda nas comunidades pós-apostólicas, tem-se uma constante mobilização de esforços dos primeiros filósofos cristãos e teólogos nas comunidades cristãs, desde Jerusalém, Antioquia (Ásia Menor), Alexandria (Egito), até a bacia mediterrânica, regularmente reunidas por Concílios e Sínodos para a consolidação do que seria a ortodoxia, isto é, o conjunto de valores, dogmas e as verdades eternas reveladas que salvaguardassem o “verdadeiro Cristianismo” (LENZENWEGER et al., 2013).
O Cristianismo e sua relação com as demais formas de espiritualidade na Antiguidade remetem a uma perspectiva de afirmação como uma “religião da verdade”, um monoteísmo assentado na ideia de um deus verdadeiro. Emergia frente a diversas formas de espiritualidade forjadas na Antiguidade, como o próprio Judaísmo, de onde emergiu, mas também com as tradições védicas da Índia, o zoroastrismo persa, o confucionismo chinês e sua relação com as tradições espirituais helênicas e romanas (IRVIN; SUNQUIST, 2004). Os cristãos se afirmavam enquanto identidade grupal como perseguidos por meio dos martírios, mas também na ideia de autoridade. E não por outra razão, as lideranças cristãs – encarnadas em presbíteros e epíscopos – já traçavam a anatomia da organização das comunidades cristãs. A figura do bispo, em especial, era detentora de singular importância, pois, ele mobilizava redes de bispos e presbíteros para definir suas ações e também o cânon da fé. Para tanto, se reuniam com frequência em distintas localidades, a fim de estabelecer as verdades cristãs. Nesse ínterim, havia a preocupação por uma territorialidade de identidade cristã, mesmo que em tais territórios houvesse perseguição política implacável. Segundo Tertuliano, o sangue dos cristãos constituía uma espécie de sementeira (Semen est sanguinis) para que novos adeptos resilientes aderissem às suas práticas (LENZENWEGER et al., 2013).
A cada Concílio realizado, as redes de bispos se articulavam e mobilizavam para disputar temas teológicos, perspectivas dogmáticas, cânones e medidas disciplinares para a estruturação da Igreja. Como principais agrupamentos, destacam-se: as redes episcopais italianas, sediadas em Roma; as redes no norte africano, tendo Cartago como referência; as redes no nordeste africano, com Alexandria; as redes das comunidades de Antioquia; e, as redes das comunidades de Jerusalém. E a cada reunião sinodal (ou conciliar) realizada, eram latentes as diferenças entre as interpretações das comunidades mediterrâneas/romanas em relação às comunidades orientais (KAUFMANN et al., 2012).
Com a chamada Revolução Constantina (VEYNE, 2010), a atividade pública dos bispos romanos configurava no “partido católico” que, com a força e liderança do próprio imperador Constantino, emergia uma identidade romana de Cristianismo, constituindo anátemas para agrupamentos episcopais que divergiam das articulações desses bispos. Embora não houvesse uma liderança centralizadora para além do imperador que articulasse os bispos, parecia que a liderança do bispo de Roma se impunha às demais redes episcopais. Sem dúvida, a busca por uma ortodoxia consolidada e que fosse finalmente custodiada ao longo dos séculos mobilizava energias de forma intransigente para impor o que fosse necessário. E não por outra razão, o Estado romano iniciava implacáveis perseguições aos grupos contrários e rivais, consolidando o que Le Goff e Schmidt (2006) denominaram Igreja Imperial.
A relação Estado-Igreja a partir de Constantino parecia ser inexoravelmente irreversível para os bispos romanos, que se constituíam em uma casta principesca com privilégios. Mesmo com tentativas restauracionistas por parte dos imperadores pagãos, a Igreja se forjava como religião de Estado (LENZENWEGER et al., 2013). Nesse sentido, Constantino expandiu suas ações fazendo uso da ação cristã. E mesmo com distintas interpretações historiográficas sobre uma suposta aliança de Constantino para então se prevalecer como poder, fato é que o Império também não reagia com a mesma vitalidade com os passar dos séculos. Assim, sucessivas crises e disputas internas colocavam a prova sua estrutura de poder, ao passo que a Igreja se valeu dessa relação para se afirmar, estabelecendo o primado de Roma sobre os demais patriarcados cristãos.
O partido católico consolida sua influencia como força hegemônica da custódia dos valores cristãos. Tinha-se aí uma tradição que deveria se alavancada pelos séculos até a chegada da parusia.
De outro modo, os esforços dos padres da Igreja foram importantes para elaborar uma literatura cristã, tais como: Atanásio, Ambrósio, Cipriano, Agostinho, entre outros, formando um imaginário e um ethos cristão “católico” (PELIKAN, 1984).
No decorrer da trajetória da Igreja na Europa, o papado se afirmou como uma autoridade que deveria ser realmente universal. Tinha-se, então, uma clara subordinação do Estado ao poder da Igreja – tradição genético-teológica da representação do catolicismo muito cara, pois reafirmar a autoridade do “Santo Padre” e o ministério petrino deveria ser a tônica dos pontificados papais e, não por outra razão, a medievalidade pareceu consolidar essa imagem triunfalista da Cidade de Deus na Terra, configurada como pura e santa, entre os indivíduos terrenos (CONGAR, 1997).
2. A modernidade como ameaça à cristandade
Os diversos embates travados em espaço europeu entre a Igreja e o poder temporal reacenderam a imagem da Igreja sob tensionamento e disputas pelo seu cânon. Parecia que a tradição de um passado glorioso estava novamente ameaçada por um novo inimigo. Mas, o inimigo não estava corporificado em uma entidade ou instituição como fora o Império de Roma, por exemplo. Tinham-se, então, novas “ideias estranhas” no horizonte; e, aquilo que se constituía por modernidade. Para muitos papas, como, por exemplo, o papa Pio X, as novas “ideias estranhas” eram a maior ameaça à Igreja de Cristo de todos os tempos, pois sua estratégia dispunha de novas táticas, que infiltravam nas fileiras do clero, minando, por dentro, o núcleo duro da ortodoxia.
Mas vós bem sabeis, Veneráveis Irmãos, como tudo foi debalde; pareceram por momento curvar a fonte, para depois reeguê-la com maior altivez. Poderíamos talvez ainda deixar isto desapercebido se tratasse somente deles; trata-se porém das garantias do nome católico. Há, pois, mister, quebrar o silêncio, que ora seria culpável, para tornar bem conhecidas à Igreja esses homens tão mal disfarçados (PIO X, 1907, pp. 2-3) (grifos meus).
Para Caldeira (2009), as bases da modernidade se acentuaram na Reforma Luterana, na tradição iluminista e na Revolução Francesa – momentos cruciais para reposicionar o horizonte de expectativas das comunidades europeias, bem como seus respectivos Estados nacionais, que angariavam mais força e questionamento frente ao poder do papado. A Reforma Luterana, por exemplo, decepou com força uma considerável fração dos membros da Igreja, cujas ações persecutórias implacáveis foram incapazes de reconstituir a unidade – pelo menos, no plano da imagem – católica, mesmo a trajetória da Igreja tendo sido marcada por cismas e heresias. Porém, o capitalismo, diferente do feudalismo, constituía com uma força motriz que suplantava certos arcaísmos no modo de pensar o Cristianismo.
Em outra via, a ciência moderna ganhava contornos que suplantavam um escolasticismo que entrevava qualquer possibilidade de avançar com os meios de ação na realidade empírica, bem como de maior compreensão da natureza humana, a partir de uma perspectiva empiricista e experimental, substituindo uma ciência calcada no aristotelismo e na metafísica. A modernidade deslocava a fé e a crença no divino de uma perspectiva objetiva e racional para uma dimensão de subjetiva e psicológica. Deslocava, assim, também, uma fé de viés universalista e monolítica para uma dimensão relativista e plural.
E a própria Revolução Francesa que, no campo da ação política, não somente estabelecia um diálogo, mas agrupamentos revolucionários de total controle e domesticação da Igreja, pelo menos enquanto tal ação se desse sob território francês. A Igreja nacional, cujos bispos então deveriam se curvar a um novo Deus – o deus da razão –, sangrava ainda mais o corpo e a musculatura da Igreja. No século XVIII, a Igreja parecia passar pela maior artilharia contra suas fileiras e até mesmo em relação ao seu sentido de existência. Para muitos, ela seria uma “relíquia do passado tolerada” (CORRIGAN, 1946 apud CALDEIRA, 2009, p. 30).
O século XIX, denominado revolucionário por Hobsbawm (2012), colocaria a Igreja sob fogo cerrado. Mas sua resiliência promoveu seu reposicionamento, sendo necessário a reconfiguração de um novo pacto de Trento. E, novamente, a busca pelo passado seria a tática que a ortodoxia adotava para superar sua grave crise.
Nesse viés, o Concílio Vaticano I reabilita uma ideia centrada em si, como que uma tática espartana, de ensimesmar-se para preservar-se (BELLITTO, 2010). O Modernismo passou a ser a tônica de combate frente o resgate da tradição de uma Igreja imperial, cujo contexto não lhe possibilitaria estabelecer as bases institucionais de uma contemporaneidade que emergia radicalmente. A reiterada afirmação por uma tradição passa ser a agenda de um catolicismo muito preocupado em sobreviver e ainda influir sobre o mundo.
A Igreja de ossatura tradicionalista ganhou fôlego até a primeira metade do século XX, mantendo uma postura combativa, hierarquizadora, utilizando seu braço pesado inquisitorial. Mesmo em pleno século XX, a excomunhão não fugiu das práticas eclesiásticas. Muitos padres e bispos, acusados de heresias modernistas, sofreram a mão pesada do papado, como, por exemplo, George Tyrell (1861-1909) – padre irlandês, que nem mesmo em um cemitério pode ser enterrado – e Alfred Loisy (1857-1940) – padre francês, considerado uma das figuras difusoras do Modernismo no interior da Igreja – ambos implacavelmente excomungados pelo Papa Pio X (ROBLES MUÑOZ, 1997).
Os demais papados seguiram a tônica de Pio X: uma Igreja preocupada por manter suas tradições, constrangidas frente aos desafios que a contemporaneidade se impunha à realidade mundial de guerras, genocídios e revoluções.
Destarte, diversas organizações tradicionalistas foram criadas entre a segunda metade do século XIX e o decorrer do século XX, tais como: a Liga de São Pio V, o Instituto Bíblico de Paris, a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, o Instituto do Santíssimo Redentor, o Opus Dei, entre outras, que emergiram como forças de apoio ao papado e se afirmam no passado como forma de reiterar o “verdadeiro catolicismo”.
3. O Concílio Vaticano II visto como desvio da tradição católica
Surpreendentemente, as organizações tradicionalistas do Catolicismo sentem que sofreram um revés muito forte com o Concílio Vaticano II que, embora não tenha definido novos dogmas em suas constituições e decretos, mudou a interface da Igreja frente ao mundo, adaptando-a as linguagens de um presente cada vez marcado por tensões geopolíticas incontornáveis, como, por exemplo, a Guerra Fria.
E não por outra razão, para os tradicionalistas, combater o Concílio Vaticano II era a maior tarefa de um católico. O Concílio Vaticano II, para estes, é o principal encalço que representa uma vitória dos modernistas dentro da Igreja (MATTEI, 2013), bem como não representa o verdadeiro Catolicismo e desvia da verdadeira Igreja de Jesus.
Os papas, após o Concílio Vaticano II – à exceção de Paulo VI e João Paulo I –, foram cautelosos no aprofundamento do Concílio, principalmente no que tange aos documentos conciliares que tratavam das questões de caráter extra religioso, ou seja, problemas sociais, culturais, ecológicos, econômicos e de direitos humanos. E para alívio dos setores tradicionalistas, houve um congelamento da agenda “progressista” do Concílio, onde os últimos papas, como, por exemplo, João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013), tiveram como foco agendas teológicas e morais.
Isso posto, para a narrativa dos movimentos católicos tradicionalistas, tem-se o novo desafio de manter a ortodoxia intacta de arroubos heterodoxos. O papado de Francisco inaugura uma novidade nesse disputatio clerical. É que desta vez, o “inimigo” não está fora, mas ele tomou a principal liderança da Igreja. Para tais movimentos, é a maior crise já vivenciada pela Igreja em toda sua trajetória milenar.
Aqui vale destacar a ascensão da extrema direita em vários países, sendo, por exemplo, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump (2016-2020), o maior expoente desse movimento – articulado desde o final da década de 2000, na conjuntura da crise econômica de 2008. No caso estadunidense, vários bispos e cardeais locais tradicionalistas se aproximaram de Trump, estabelecendo, ao mesmo tempo, uma nova plataforma discursiva no interior da Igreja, com reiterados ataques abertamente declarados ao pontífice de Roma. Na sutileza dos discursos, é possível perceber um convicto retorno aos ideais de uma Igreja gloriosa, imaculada, ufânica e românica.
E por isso, as prédicas dos prelados que não aceitaram os documentos conciliares eram reiteradamente de crítica pelo fato de parecer ter havido uma “ruptura” com o passado, uma perca da continuidade da tradição. Entre os principais símbolos de resistência ao Concílio Vaticano II, tem-se o monsenhor Marcel François Marie Joseph Lefebvre, arcebispo francês, que posteriormente foi considerado cismático. Em um de seus sermões, é possível perceber sua queixa em relação à descontinuidade da tradição e de ser considerado “inimigo” da Igreja, como que ela tivesse passado ao avesso:
A Igreja Católica não pode ser concebida senão como continuidade, como tradição, como herdeira do seu passado. Uma Igreja Católica que rompa com seu passado, com a sua tradição, é algo inconcebível, e é devido à impossibilidade de conceber semelhante coisa que eu me encontro numa situação pouco estranha: a situação de ser um bispo suspeito de ter fundado na Suíça um seminário que foi legal e canonicamente erigido, um seminário que acolhe muitas vocações. […] Como é possível que, continuando a fazer aquilo que fiz durante cinquenta anos da minha vida, com as felicitações e o encorajamento dos Papas, em particular do Papa Pio XII, que me honrava com sua amizade, eu seja hoje considerado um inimigo da Igreja? […] Não creio que semelhante coisa seja possível ou concebível. Há, pois, qualquer coisa que mudou na Igreja, qualquer coisa foi mudada pelos homens da Igreja, na história da Igreja (LEFEBVRE, 1977 apud MATTEI, 2013, p. 491).
Abre-se aqui uma interessante reflexão a respeito dos estudos de recepção e usos do passado na questão do Catolicismo e da Igreja Católica: do ponto de vista dos tradicionalistas, é possível observar o uso reiterado de um discurso que sugere a ideia de continuidade. Nesse caso, tem-se a tônica de que tais setores seriam uma espécie de núcleo duro, que custodia, ao longo dos séculos, a tradição da Igreja.
Porém, esse tradicionalismo que reivindica a Igreja da origem, em verdade, é um tradicionalismo configurado a partir da base teológica oitocentista, muito fidedigna ao Concílio de Trento, mas reafirmado no Concílio Vaticano I. Assim, dado todo o conjunto dos “adversários da Igreja”, o que se denominou Modernismo constituiu-se com uma síntese daquilo que ameaçaria as verdades reveladas de Cristo. Por isso, a estratégia de a Igreja se encolher para sobreviver pareceu ser uma estratégia de uma Igreja muito combativa e fervorosamente ligada a um passado, como já dito, glorioso. A defesa do papado, reverberado no então dogma da “infabilidade papal”, pareceu ser um bom emprego de uma identidade católica contemporânea para os tradicionalistas. Defender o papa, guardião da Santa Igreja de Cristo, passou a ser a nova narrativa.
Aqui vale atentar-se para a contradição, pelo menos para os tradicionalistas, em como defender o papado, tendo um pontífice que é, para eles, completamente adverso ao que se pensou historicamente. É como se houvesse uma espécie de “tradicionalismo constrangido”, pelos menos para os setores moderados que ainda fazem comunhão com o papado e aceita seu primado.
Há outras saídas narrativas como as já conhecidas teses sedevacantistas ou mesmo afirmar que o papa Bento XVI sofreu um golpe. De fato, é possível perceber todo um arsenal categorial discursivo de tradição moderna – golpe, ruptura, guerra de narrativa – envoltos nos discursos tradicionalistas.
Considerações Finais
Pensar a Igreja como um organismo vivo, que secularmente foi disputado e tensionado a solavancos entre “guardar a fé” e “adaptar-se aos tempos”, tem sido a tônica dos movimentos clericais. Segundo Rust (2015), os novos estudos historiográficos da cristandade possibilitam um novo vigor de análise da historicidade da Igreja Católica para além da velha história eclesiástica ou pelo menos das críticas historiográficas de uma História da Igreja de base apologética, pensando, assim, em uma Igreja imersa em uma dimensão global, multifacetada, constrangida, marcada por disputas internas. Ademais, vale pensar a recepção de seu passado no que tange ao recorte da Antiguidade como uma tradição que reiteradamente é disputada.
Em suma, buscou-se aqui delinear uma ideia de base muito assentada em um passado enraizado, no caso, dos tradicionalistas, cuja imagem parece muito viva para os saudosistas de um passado que não viveram, mas que tentam virtualmente atualizá-lo.
Referências
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TILLEY, T. W. Inventing catholic tradition. Oregon: Wipf & Stock Publishers, 2011.
VEYNE, P. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Trad. de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
[1] O conceito de tradicionalismo é marcado por clivagens que manifestam diferentes contornos, uma vez que, nos diversos agrupamentos católicos, não se trata de um campo homogêneo e coeso. A expressão é bem típica do século XIX, em razão de uma postura ultramontanista da Igreja, em especial, por parte do papado, em relação à cristandade, afirmadas no Concílio Vaticano I (1869-1870). Mas, o debate ganha extrema visibilidade com as disputas no interior do Concílio Vaticano II, acusado pelas alas tradicionais de concílio modernista. Por isso, tal termo denota distintas perspectivas, desde setores do clero que negam por completo os documentos conciliares do Vaticano II, tendo atitudes cismáticas, bem como setores que, embora apontem alguma legitimidade no Concílio, praticam a missa no chamado rito antigo – herdeira do Concílio de Trento (1545-1563). Cf. Cernera e Morgan (2000), Tilley (2011) e Piderit e Morey (2012).
[2] A expressão “modernismo como um mal a ser combatido no interior da Igreja” foi cunhada pela primeira vez pelo Papa Pio X (1903-1914) em sua encíclica Pascendi Dominci Gregis, de 1907. Assim declarou Pio X (1907, p. 2) sobre os modernistas: “Pasmem, embora homens de casta, que Nós os ponhamos no número dos inimigos da Igreja” (grifos meus).
Meu irmão, vou ler todos! Você é mega!!! Mestre dos mestres…