O tempo histórico: perspectivas de análise em Braudel e Koselleck

Novas nuances da categoria tempo enfrentadas pelos historiadores na contemporaneidade
1. Introdução
Analisar o tempo histórico sempre foi um desafio para os historiadores. Essa substância, diria Aristóteles, marcada pela complexidade e inexorabilidade do ontem, do agora e do amanhã. A ciência histórica, durante séculos, tem debatido com profundidade sobre esse tema, utilizando-se
de inúmeros referenciais teórico-metodológicos para apreender as nuances do tempo histórico. Variegados debates foram travados, no século XIX, e com maior vagar no século XX, acerca de como operar teórica e metodologicamente o tempo a partir da disciplina da História.
Entre alguns desses debates, especificamente no século XX, estão aqueles que, por um lado, defende a possibilidade da apreensão e compreensão dos sujeitos e seus eventos – não como mímesis – uma realidade a ser compreendida, ainda que relativa. Do outro, por sua vez, estão aqueles que defendem que o tempo é apreendido apenas como representação, ou seja, sem a possibilidade de capturar o real, mas apenas o conjunto de signos os quais são representados por meio de texto, e mesmo o contexto é o texto fora do texto.
O presente artigo, então, visa analisar o tempo histórico comparando duas formas de realizar esta análise: a primeira utilizando a concepção de Fernand Braudel (1902-1985), isto é, o tempo compreendido como longa duração e a segunda a partir dos referenciais de Reinhart Koselleck (1924-2006), o tempo compreendido por meio das experiências.
Nosso objetivo aqui é contrastar essas duas formas de apreender o tempo histórico, marcada por contextos e visões diferentes, cada qual com sua especificidade e com seus respectivos resultados produzido a partir da ótica de cada um. Não se trata apenas de fazer um contraste, mas, sobretudo, perceber os matizes da temporalidade, se utilizando dessas lentes díspares para enxergar o tempo histórico. Sendo que essas formas díspares de perceber o tempo histórico podem gerar ricos debates teóricos acerca de como pensar o mesmo.
Para cumprir nosso objetivo, realizaremos uma análise das teses braudelianas, localizando-as, primeiramente, o seu lugar de fala, bem como alguns de seus interlocutores e, por conseguinte, analisaremos como Braudel percebia o tempo histórico e como suas questões foram importantes, em sua época, para as pesquisas históricas. No segundo momento, observaremos as formulações de Reinhart Koselleck, historiador que elaborou explicações teóricas para lidar com o tempo histórico, particularmente, com atenção às experiências. Ademais, observaremos o quadro nocial formulado por ele, que xxxxx ênfase na segunda.
2. Braudel: o tempo nas estruturas
Em outubro 1958, foi publicado um artigo de Braudel nos Annales, na seção Débats et Combats, cujo título era História e Ciência Sociais: a longa duração. E no primeiro parágrafo
Braudel foi muito enfático: “há uma crise geral das ciências do homem”.
A severa crítica a qual refere Braudel era em relação à velha forma de fazer história, e por extensão das ciências sociais. Ou seja, a história centrada no fato, no evento, na événementielle (expressão batizada por Paul Lacombe para designar uma história ocorrencial).
A história da curta duração, longamente escrita pelos historiadores do século XIX, o aprisionamento ao evento, ao fato, ao terreno movediço da política, à exaltação das grandes personalidades e ao discurso apregoado da nação, são algumas, xxxx expoente da segunda geração da referida revista francesa.
Todavia, por trás dessa crítica ao tempo da curta duração, está também outra questão, que gerou tensos debates teóricos, a qual trata do estruturalismo defendido por Claude Levi Strauss. O artigo de Braudel, por sua vez, também é parte constitutiva dessa querela com os estudos antropológicos – e de toda sorte as ciências sociais – ancorados no estruturalismo. Não é objetivo deste artigo, porém, aprofundar essas querelas aqui, mas apenas localizar Braudel no contexto em que elas vieram à tona.
A sociologia, a psicologia, a economia, a geografia e a história estavam em processo de renovação de seus estatutos de inteligibilidade, da construção de novos métodos, novas teorias, enfim, foi o contexto de consolidação das chamadas ciências humanas e sociais. Cada qual afirmada pelos seus interlocutores, os quais disputavam seu espaço na academia. No caso da história, foi o momento propício para o debate quanto à reformulação de sua teoria e seu método; como se sabe o seu aparato metodológico não era [é] o mesmo de uma ciência “empiricista”2 como a sociologia ou a etnografia.
Por outro turno, conquanto Braudel tenha criticado o estruturalismo na concepção de Levi Strauss, não nega a ideia de estrutura. No contexto do debate de afirmação das ciências sociais, entretanto, ele acredita que a melhor forma de compreender essa relação temporal do humano, com as estruturas da sociedade, é por meio da história. As ciências sociais, segundo ele, concebem as estruturas de forma muito fixas, ao passo que, com a história, as estruturas são construções da engenharia social que podem ser o suporte de estabilidade, mas também o seu ocaso:
Por estrutura, os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidade e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida, articulação, arquitetura, porém, mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações: atravancam a história, incomodam-na, portanto, comanda-lhe o escoamento. Outras são mais prontas a se esfarelar. Mas todas são ao mesmo tempo, sustentáculos e obstáculos.3.
A dinâmica do tempo histórico é constituída das estruturas. Braudel, desta maneira, compartilha da reflexão do estruturalismo, contudo, chamando à atenção para as permanências e descontinuidades dessas estruturas nas densas camadas do tempo histórico. Densas camadas porque Braudel, embora observasse o tempo numa perspectiva de linearidade – evidentemente que distante das filosofias da história ou também da perspectiva dos metódicos, isto é, progressista – porém, uma linearidade a qual se circunscreve num conceito muito caro para ele que é a noção de longa duração [longue durée]:
Uma história quase imóvel, a todo homem em suas relações com o meio que o cerca; uma história lenta no seu transcorrer e a transformar-se, feita com frequência de retornos insistentes, de ciclos incessantemente recomendados4.
Há um tempo nas estruturas, que por sua vez é texturizado pelas conjunturas, e essas conjunturas navegam na tessitura das estruturas constituindo, desse modo, num tempo moroso, lento, que é a longa duração. O tempo lento da longa duração, sem sombra de dúvida foi um grande insight, naquele momento, de perceber o tempo histórico, desatrelado da ideia de progresso, como os historiadores do século XIX. Uma geração inteira ficou marcada por essa forma de pesquisar a história. Ernest Labrousse com sua história serial, por exemplo, realizou muitas pesquisas no campo da história econômica, adstrita a uma visão quantitativista dos preços, em longas séries temporais. Alguns exemplos, Ernst Robert Curtius observou a dimensão cultural da civilização romana em longas séries prolongadas.
A longa duração, portanto, constitui o eixo dorsal da forma braudeliana de lidar com o tempo histórico. Porém, ao tratar o tempo histórico, nessa esparsa camada de tempo, observando a paisagem das civilizações, da geografia, chama- nos a atenção para um aspecto: a noção de “indivíduo” na história ficou esmagada pela densidade do tempo. O sujeito histórico passa para uma nova configuração, que não está mais centrada no agente individual, como na événementielle. As estruturas das civilizações e do mundo civilizado se
ressignificam, o que ressignifica, também, o sujeito histórico, que está submerso nas águas profundas e turvas da longa duração.
Por esta razão, Braudel fornece uma maneira muito particular de pensar o tempo histórico. A forma de ver a história, marcada pelo fatualismo, pela ocorrência do evento em cadeias cronológicas, em série, como que um corolário, é rompido. Para ele, o tempo ocorrencial, está inserido na longa duração. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, clássico publicado em 1949, é um claro exemplo de pesquisa construída na ótica da longa duração. As temporalidades históricas não são eventos encadeados mecanicamente, mas entremeados às densas camadas temporais. No Mediterrâneo, Braudel faz uma espécie de relação muito próxima entre a história e conceitos geográficos, situando, com muita ênfase, a dimensão espacial. Essa combinação espaço-tempo é, por assim dizer, uma combinação, entre outras, das relações humanas com as relações espaciais.
A este mundo espesso, compósito e mal delimitado que acabámos de descrever abundantemente, só se pode reconhecer a unidade de seu ser um encontro dos homens, uma liga de histórias. Todavia, é decisivo que no coração desta unidade humana, num espaço mais estreito do que ela mesma, actue uma poderosa unidade física (…)5. xxxx instituições, as guerras, os ciclos e interciclos econômicos, as transumâncias, as regularidades, os domínios, as resistências, enfim, estão imersas nesse tempo longo, como que xxxx inamovível, onde a mudança é lenta ou quase imperceptível. Observa-se, então, que há uma considerável intensidade na pesquisa empírica, na análise abundante de fontes, do que na reflexão teórica para pensar com maior rigor na análise das mesmas. Aliás, é uma característica muito marcante dos Annales.
O rigor com o método não é tão preciso, como na perspectiva cientificista dos metódicos. Cabe ressaltar, entretanto, que o fato de não haver tanto rigor com o método para a pesquisa das fontes não descredencia cientificamente esse modelo de análise histórica. Na verdade, é apenas uma forma diferente de fazer história em relação à visão dos modernos, aprisionada ao cientificismo e ao político, o que não permitia uma Weltaschaaung [cosmovisão de mundo, para usar uma expressão de Weber] da história. Observa-se uma preocupação dos Annales em fazer uma “história total” como teria afirmado Febvre. A longa duração, por esse ângulo, abarcaria esse foco totalizante de pesquisar a história. Braudel afirmou: “Para mim, a história é a soma de todas as histórias possíveis – uma coleção de misteres e de pontos de vista, de ontem, de hoje, de amanhã”6.
Por isso, essa ênfase na longa duração, é parte de um processo de desconstrução dos velhos modelos, dizia Braudel, de pesquisar a história. O tempo de curta duração, assim, sofreu ácidas críticas de Braudel: “(…) o tempo curto é a mais caprichosa, a mais enganadora das durações”7.
O tenso debate de Braudel com a sociologia, por outro lado, demonstra uma espécie de afirmação do espaço da história no debate acadêmico, como que um discurso de autoridade, atribuindo a história uma musculatura muito maior para tratar do tempo e das estruturas. Em suas reflexões, deixa transparecer uma dupla forma de ver o tempo, como que um tempo da história e um tempo da sociologia. Neste caso, o tempo curto, preocupação dos sociólogos, consistia numa forma muito reduzida de observar a complexidade do tempo histórico, numa visão do todo. O tempo de curta duração teria, segundo ele, uma limitação teórica e condicionaria à pesquisa tão-somente empírica das fontes, pois, inadvertidamente, estaria focado no “fato”, no “evento”. O tempo de curta de duração, na verdade, é apenas parte das camadas constitutivas da senda temporal.
Braudel metaforiza o tempo como faixas de camadas constituídas de densidades específicas, como, por exemplo, uma camada mais leve, mais superficial, que é o tempo da curta duração, e, por conseguinte, uma camada mais densa, turva, profunda, que é a longa duração, a qual condensaria as demais camadas: “Todas as faixas, todos os milhares de faixas, todos os milhares de estouros do tempo da história se compreendem a partir dessa profundidade, dessa semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela”8.
Certamente, a noção de longa duração, em certa medida, foi uma forma muito original de desvanecer aquela história fatualista, apregoada pelos metódicos. Sem sombra de dúvida, a longa duração, ampliou a forma de o historiador enxergar o passado e, portanto, interrogar esse passado com novas possibilidades, abrindo para novos campos e domínios que até não se imaginava explorar.
Olhando hoje, com o devido olhar distanciado sobre essa forma de fazer história, percebemos alguns percalços, sobretudo na dimensão teórica. Especificamente, utilizar a longa duração foi uma forma de olhar para as fontes, de orientar a pesquisa histórica de um tempo muito datado e demarcado. Surpreendentemente, na segunda metade do século XX, nos anos 60 com a linguistic turn [virada linguística], houve uma reviravolta, pois, pelo que parece, esse terreno seguro da longue durée desabou, uma vez que as gerações de historiadores que se formaram após esse contexto, já olhavam com crítica e distanciamento essa maneira de conceber o tempo histórico.
A ênfase na longa duração, como forma de ampliar uma perspectiva que até então estava atinada no particular – no caso as gerações do século XIX – parece que chegou ao seu limite. Percebe-se que a ótica de observar o tempo histórico, grosso modo, parece sofrer pressões de variações ao longo da própria historicidade. De um aspecto particular, com os metódicos, inflou-se para uma dimensão do todo, com os Annales, mas que novamente está retornando a uma perspectiva particular de tratar os objetos e as fontes históricas. Porém, cabe salientar, que esse “retorno” ao particular, é visto com os “olhares” diferentes, em relação ao século XIX.
Entretanto, é inegável a contribuição braudeliana de perceber a história na longa duração. Dela decorrem, a nosso ver, dois “combates” – para usar a expressão de Febvre – a saber: um mais explíticito, no caso, o enfrentamento à maneira positivista e historicista de ver o tempo histórico, progressista, fatualista; o segundo, de modo implícito, a crítica às chamadas meta-narrativas, de viés teleológico, politicista e economicista, por exemplo, certos “marxismos”9.
Finalmente, a longa duração, por acabrunhar o sujeito – no âmbito individual – esmagou também as particularidades dos agentes históricos. Tudo se explica, no tempo estrutural, geológico e denso da longa duração. Por esta crítica, é que nos chama a atenção às reflexões inovadoras de Koselleck. Ele também percebe esse “continuum de todas as histórias”, cunhando-as de coletivo singular. E, ao elaborar novas categorias, possibilita observar a intimidade dos agentes históricos e, por assim dizer, as suas particularidades. Tais categorias e reflexões serão observadas na próxima parte.
3. Koselleck: experiência e expectativa
O ensaio Futuro Passado, do alemão Reinhart Koselleck, publicado em 1979, notavelmente, é um “divisor” de água no modo de como conceber o tempo histórico. Malgrado o exagero da expressão hiperbólica, o que queremos destacar é que Koselleck é um autor que tem merecido ampla atenção, atualmente, para novas reflexões da Teoria da História.
Comumente, os historiadores dialogam com a filosofia para refletir sobre o tempo histórico. Com a modernidade, sobretudo no século XVIII, inúmeras das elaborações teóricas, de como pensar o tempo histórico, brotaram de reflexões filosóficas, o que se convencionou denominar de “filosofia da história”. Os metódicos alemães, porém, no século XIX, combateram com veemência esta forma de enxergar a história, pois sob esse prisma ela parecia mais um adereço da filosofia. Eles em sua “luta”, no tenso debate do século XIX, mobilizaram-se para construção de um estatuto metódico para História, tornando-a, assim, um saber disciplinar autônomo. Ranke parece ser uma representação muito segura para ilustrar esse debate10.
No século XX, no contexto das chamadas “crise das certezas absolutas”, e com o advento da corrente pós-moderna, não foram poucos os filósofos que se empenharam em pensar o tempo histórico, os quais se destacaram Paul Ricoeur, Michel Foucault, Deleuze, Derrida, etc.
Posto isto, o que queremos chamar a atenção, é que o campo da Teoria da História – que corresponde ao ferramental teórico e metodológico de como lidar com a dimensão empírica do tratamento das fontes, na construção do objeto, de como interrogar as fontes, enfim, de lidar com o tempo histórico – surpreendentemente, é uma seara a qual é recorrente à reflexão dos filósofos; e estes não têm por objeto o passado para compreender este tempo histórico. Naturalmente, não estamos aqui afirmando que o tempo histórico é uma exclusividade do historiador. Tampouco queremos afirmar que os historiadores não têm expertise para lidar com o campo teórico de seu ofício. Todavia, o historiador é desafiado, a todo o momento, de como operar com essa dimensão tão abstrata, que é tempo histórico.
Por isso, Koselleck, merece uma especial atenção, porque além de lidar com a dimensão empírica da História – é um historiador de formação – deu uma imensa contribuição no campo da Teoria da História, em como lidar com o tempo histórico, possibilitando uma releitura de como pesquisar/interpretar o passado.
Para tanto, Koselleck lança mão de duas categorias para analisar o tempo histórico: “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”. Essas expressões são categorias formais, meta-históricas. Elas não constituem um conceito em si mesmo. Na verdade, elas são utilizadas como um exercício de elevada abstração a fim de teorizar e, assim, orientar a pesquisa empírica. E no tocante a pesquisa empírica, Koselleck traz à luz uma perspectiva diacrônica dos conceitos, como que os conceitos, termos orientadores, fossem constitutivos também de uma historicidade; ele designa de história dos conceitos [Begriffsgeschichte]. Ou seja, os conceitos, por si só, também são permeados pela temporalidade histórica. Examinemos mais de perto essas categorias koselleckianas.
Por “espaço de experiência”, ele define como o espaço das vivências humanas. Essas vivências são o conjunto das experiências vividas por um conjunto de indivíduos, em um determinado espaço, e que deixam marcas, vestígios por meio de memórias, arquivos, etc. As experiências que não deixaram marcas são também parte constitutiva desse determinado espaço.
Define Koselleck:
A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto na elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamentos, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia11.
Ressaltamos que as experiências, antes de tudo, não são estáticas, nem tampouco lineares. As experiências que acontecem no presente incorporam, já de imediato, ao passado. Por isso, são chamadas de passado presente. Essas experiências são possuidoras de camadas leves, singulares e plurais. Essas camadas têm um sentido muito diferente das camadas braudelianas, isto é, lineares. Aqui, as camadas não obedecem a um padrão de regularidade específica, seja linear, seja cíclico. O que se atenta a elas não são os ritmos, as trajetórias, mas as experiências12. Isso amplia o escopo de percepção sobre as fontes. Observa-se uma especificidade de sentido em cada agente histórico, constituinte de seu específico espaço de experiência.
Como exemplo, Koselleck recorda que as revoluções, embora possa haver uma recorrência de eclosões revolucionárias, porém, estas não estão aprisionadas em um padrão de regularidade, mas são percebidas na sua especificidade, isto é, a experiência dos agentes que vivenciaram o momento revolucionário; nota-se que eles tiveram sensações e vivências muito particulares, abrindo assim um leque de possibilidades ao historiador na investigação das fontes, pois cada experiência tem um sentido diferente. Portanto, a revolução não é vista como um bloco, ou um evento, mas em camadas de experiências distintas nesse mesmo espaço.
Ademais, o espaço de experiência não está isolado. Seu campo de atuação tem uma relação com o horizonte de expectativa. O horizonte de expectativa constitui, por sua vez, na esperança do porvir. O indivíduo, em certa medida, que está no presente, mas também no passado [as experiências] não deixa de ter um olhar projetado no futuro em razão das expectativas. E cada espaço de experiência gera diferentes horizontes de expectativa.
Contudo, quebra-se a noção teleológica da história, pois ela passa a constituir-se de um elemento de imprevisibilidade. O horizonte de expectativa do indivíduo no futuro não é determinado pelo seu espaço de experiências. Há uma perspectiva contingencial no horizonte de expectativa.
Declara Koselleck:
Horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado. A possibilidade de se descobrir o futuro, apesar de seus prognósticos serem possíveis, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada. (…) o que pode mostrar que o que se espera para o futuro está claramente limitado de uma forma diferente do que o que foi experimentado no passado. As expectativas podem ser revistas, as experiências feitas são recolhidas13.
O horizonte de expectativa é uma elaboração genuína para compreender essa relação de presente e de futuro. Mas, neste caso, essa relação do espaço de experiência com o horizonte de expectativa, torna-se uma relação de passado e futuro; o passado, as vivências, isto é, as experiências não são determinantes na consecução do futuro, e assim o horizonte de expectativa, não é determinado pelo espaço de experiência. Esse campo de ligação de passado e futuro é uma linha tênue, pois, a partir da investigação de cada agente histórico, ainda que no mesmo espaço de experiência, o horizonte de expectativa será diferente e, por conseguinte, as experiências também serão diferentes.
Deste modo, ao focalizarmos a imagem de espaço e a imagem da expectativa, veremos que há uma relação de tensão, uma relação assimétrica. O historiador ao investigar o tempo histórico, perceberá uma miríade de formas de explicações que são possíveis, pois ao interrogar as fontes, cada indivíduo terá uma experiência subjetiva em relação aos demais indivíduos. Portanto, compreenderemos porque seu ensaio é chamado de Futuro Passado, pois o futuro entrelaça o passado. Essa relação de futuro, sempre será fugidia, não porque são dicotômicas, mas porque uma repercute na outra. Vejamos um exemplo proporcionado pelo próprio Koselleck:
(…) a experiência de Carlos I abriu, mais de um século depois, o horizonte de Turgot, quando ele insistiu com Luís XVI que realizasse as reformas que o haveriam de preservar de um destino semelhante. O alerta de Turgot ao seu rei não encontrou eco. Mas, entre a Revolução Inglesa passada e a Revolução Francesa futura foi possível descobrir e experimentar uma relação temporal que ia além da mera cronologia. A história concreta amadurece em meio a determinadas experiências e determinadas expectativas14.
Esse belo exemplo, portanto, ilustra o que dissemos até agora, ou seja, mesmo os franceses observando a experiência inglesa, esta não determinou aquela. Mesmo os franceses tendo compreendido a experiência da Revolução Inglesa, o que permitiria eles se precaverem, a experiência inglesa não foi suficiente para impedir que eclodissem experiência semelhante na França. E mesmo acontecendo a revolução na França, esta teve um espaço de experiência muito diferente da experiência da Inglaterra.
Alhures, no tocante a história dos conceitos, a análise das fontes também é reconfigurada por um novo modus operandi. As fontes contêm expressões que são típicas de um determinado espaço de experiência. Essas expressões – os conceitos – são carregadas de uma historicidade, como já afirmamos. Koselleck atenta para o risco que todo historiador está submetido incorrer e fornece elementos muito interessantes como meio de evitá-lo, ou seja, o anacronismo. Alguns teóricos já afirmaram sentenças duras quanto a esse pecado que o historiador pode cometer. E a análise diacrônica dos conceitos, amplia o olhar para a localização precisa em que se devem compreender os conceitos no tempo histórico. Não raro é comum ouvirmos que Koselleck é o “historiador dos conceitos”.
Assim, no campo da Teoria da História, os conceitos são repensados. Nesse exercício há uma aproximação dos conceitos com a filologia, com a linguística, entre outras ciências da linguagem. Uma vez que as palavras são carregadas de sentido, o historiador deve atentar-se para a trajetória desses sentidos, pois, curiosamente, os sentidos passam por processo de mudanças. Como exemplo, Koselleck utiliza o vocábulo “revolução”, que a princípio apresentava como fórmula modelar de retorno ao acontecimento. E com o passar do tempo, adquiriu novo sentido, passando indicar uma perspectiva teleológica de
caráter teológico-filosófico, para, por conseguinte, indicar uma mudança na estrutura social.15.
Decorre-se daí quão importante é a observação no campo das experiências, mas também das expectativas, pois ambas possibilitam ver uma perspectiva cambiante dos conceitos. O universo de possibilidades de interpretação do passado será bem mais amplo, pois, no processo de garimpagem das palavras e suas mutações, tornará a pesquisa bem mais rica, longe de esquematismos que não propõe uma reflexão fundamentada do tempo histórico.
Ele também adverte que essa historicidade dos conceitos não pode ficar isolada. A história social é, digamos assim, a esteira da constituição desses conceitos. Essa história social a qual ele se reporta, não se trata de um campo de domínio da História, porém, das experiências. A diacronia dos conceitos não se constitui no abstrato. Os conceitos são carregados de sentidos, porque são constitutivos de um espaço de experiência. E por serem constitutivos de um espaço de experiência, seguramente, não são estáticos, estão em movimento, estão em mudança.
Para reforçar o que dissemos, conclui Koselleck:
Portanto, a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado da crítica as fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto vista social e político e que analisa co particular empenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político. É evidente que uma análise histórica dos respectivos conceitos deve remeter não só a história da língua, mas também a dados da história social, pois toda semântica se relaciona a conteúdos que ultrapassam a dimensão linguística.16
Em última análise, escrever a história por este ângulo torna-se mais interessante. O historiador, por outro lado, terá muito mais trabalho, exigindo-se dele mais rigor no tratamento das fontes. A dimensão teórica passa ser o “esquadro e o prumo” para realizar a pesquisa empírica. A convivência com a teoria deixa de ser um exercício meramente diletante, pois, utilizando de empréstimo a expressão marxista, a “práxis” será a prática do historiador. O contato permanente com as fontes e com a teoria torna-se um meio indissociável de realizar a análise do tempo histórico.
4. Considerações finais
A análise do tempo histórico, em tempos de profunda mudança na forma de enxergá-lo, exige do historiador melhor refinamento da limalha de suas ferramentas. As inúmeras correntes, propostas, metodologias, enfim, modos diversos de pensar o tempo histórico são pensados e repensados a todo o momento. Compreendemos que o modo braudeliano de apreender o tempo histórico, teve seu tempo, suas vitórias e também o seu desgaste. Braudel ao expor sua longa duração, também foi vítima de sua própria reflexão ao afirmar que:
Temos assim, mais ou menos aperfeiçoados, por vezes ainda artesanais, os modelos. Os modelos não são mais do que hipóteses, sistemas de explicação solidamente ligados segunda a forma da equação ou função: isso é igual aquilo ou determina aquilo. Mas uma certa realidade não aparece sem que uma outra não acompanhe e, desta para aquela, relações estreitas e constantes se revelam17.
Ou seja, formas ou modelos vêm e vão. Alguns conseguem certa permanência. Outros ficam apenas como proposta, mas não encarnam. Os historiadores estão sempre reavaliando as condições para o seu labor. E pensar o tempo histórico exige concentrada atenção nos exercícios de abstração para refletir sobre o seu objeto e como operar o seu objeto no tempo histórico.
Destarte, associamos ao que Koselleck diz: “Que é o tempo histórico? Essa é uma das perguntas mais difíceis de responder no campo da historiografia”18. Pensar o tempo histórico, a matéria-prima da história, é um exercício muito complexo e que desafia os seus “operadores”. Entretanto, nesse oceano de possibilidades de ver o tempo histórico, percebemos que, a despeito de qualquer filiação teórica, o repertório que Koselleck nos apresenta, parece-nos, no atual estágio, abrigar-nos com a certeza de que suas ponderações não consistem em instituir uma escola de pensamento, mas, de fato, de chamar-nos à reflexão e ao debate das possibilidades de pensar o tempo histórico com o devido cuidado que exige o rigor metodológico.
Negar a perspectiva do real, como quer, por exemplo, os pós-modernos, não nos parecem ainda uma aposta segura. As incertezas derivadas das reflexões da segunda metade do século
XX não podem gerar um niilismo na forma de pensar o tempo histórico. Nem aprisionar o conhecimento histórico uma a mera narrativa literária.
Portanto, analisar o passado, se valendo das categorias espaço de experiências e horizonte de expectativa, reverberando as diacronias e as sincronias dos conceitos, nos possibilita enxergar com lucidez a temporalidade histórica, marcada por essa plurívoca percepção de sentidos produzidos pelos agentes históricos. E assim, essa forma de aproximação do historiador com essa reflexão, parece-nos um meio muito cioso de perceber o tempo histórico.
5. Referências
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História Trad. J. Guinburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. São Paulo: Perspectiva, 2011.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Livraria Martins Fontes: Lisboa, 1983, Vol. 1.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto PUC-Rio, 2006.
KOSELLECK, Reinhart. Historia/Historia. Trad. Antonio Gómez Ramos. Madrid: Minima Trotta, 2004.
KOSELLECK, Reinhart. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Trad. Daniel Innerarity. Barcelona: I.C.E. de la Universidade Autónoma de Barcela, 2001.